Faz pouco mais de cinco anos que a barragem do Marrecas encheu completamente, formando o lago que mudou a paisagem do distrito caxiense de Vila Seca. Na época, mais de 6 mil árvores foram cortadas — entre as quais 3,5 mil araucárias, espécie protegida — para alagar a área de 215 hectares da represa. Em 2011, em plena construção da barragem, a retirada das árvores chegou a ser paralisada por quase 10 meses após o questionamento de entidades ambientalistas, até que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) aprovasse a retomada dos trabalhos no início do ano seguinte.
Como contrapartida, o Serviço Autônomo Municipal de Água e Esgoto (Samae) garantiu o plantio de novas araucárias e repassou 1% do valor da obra para a Secretaria do Meio Ambiente aplicar em unidades de conservação. Hoje, a barragem ainda é alvo de críticas pelos impactos, mas a autarquia garante que os danos foram minimizados e que o ambiente se recupera bem.
— O licenciamento ambiental para obras desse porte prevê a redução do impacto, porque algo sempre vai ter. Mas o lago se encaixa bem dentro do ambiente e, pelo que monitoramento que fizemos, os animais e as plantas se adaptaram bem — diz Gerson Panarotto, diretor de Planejamento Integrado da autarquia.
O Plano Básico Ambiental (PBA) da obra previa a implantação de 12 programas. O único que ainda está ativo depois de mais de quatro anos de operação do Sistema Marrecas é o que monitora a qualidade da água da represa. Entre as contrapartidas, foi desapropriada uma faixa de 100 metros no entorno do lago, totalizando 220 hectares, hoje Área de Preservação Permanente (APP). Segundo Panarotto, além da APP, o Samae adquiriu mais outros 645 hectares para compensação ambiental.
— São áreas de mata e também de campo, que faziam parte do bioma — explica.
A maior área fica um pouco além do lago, a cerca de cinco quilômetros do centro de Vila Seca pela RSC-453 (Rota do Sol), partindo da área urbana de Caxias. O espaço de 498 hectares é chamado Parque dos Pinhais e inclui uma mata em que araucárias se destacam às margens do arroio Marrecas. O portão de acesso permanece fechado, para garantir a proteção do local. Em outubro deste ano, porém, dois imóveis públicos que ficavam dentro da área pegaram fogo. A causa dos incêndios não foi esclarecida, mas desde então ao Samae mantém um vigilante terceirizado nas proximidades.
As outras áreas de compensação ficam em pontos ao redor da represa. Por ali, também foram plantadas 2 mil mudas de araucária, que levarão vários anos até atingir o porte das antigas. Para esses espaços foram movidos pequenos animais e parte das plantas da área alagada — entre os quais cerca de 4 mil xaxins, espécie em extinção. Alguns exemplares tiveram idade estimada em até 500 anos, na época da obra.
De acordo com Panarotto, a recuperação da área pode ser considerada bem sucedida. A maior dificuldade, no início, foi a disputa com moradores da região: já houve registro de queimadas em propriedades vizinhas que invadiram parte da área de preservação, apesar de a responsabilidade de agricultores nunca ter sido confirmada. Gado também costumava invadir pontos da área de compensação para pastar.
A retirada de portões de acesso, implantação de valas e um segundo cercamento da área onde foram plantados os xaxins protegidos acabou resolvendo o problema, diz o diretor. Ainda assim, ele acredita que, de maneira geral, a população contribuiu para a preservação.
— A mata foi se reconfigurando. Na época da construção, fizemos trabalhos de educação ambiental nas escolas e associações de Vila Seca. E o pessoal se engajou bem, especialmente quem está mais próximo. Eles cuidam, têm uma noção da importância — avalia.
Abastecimento para 70 mil pessoas
Hoje, o Sistema Marrecas abastece com água cerca de 70 mil pessoas das regiões norte e nordeste de Caxias e parece ter afastado o perigo de racionamento, tema bastante presente no discurso político de cinco anos atrás. Estão em andamento obras de interligação de redes que devem possibilitar a expansão do abastecimento para mais 20 mil pessoas na região do Santa Fé.
As vazões de captação atual do sistema variam entre 260 e 300 litros por segundo, o que corresponde a cerca de 30% da capacidade máxima. O Marrecas é planejado para atender a expansão da região norte da cidade. Como os outros sistemas foram desafogados, a ideia é que o Faxinal atenda o suporte o crescimento das regiões sul e leste e o Maestra, a zona noroeste.
"Outras alternativas poderiam ser tomadas", alega entidade
O Marrecas, no entanto, ainda não é unanimidade. Para Otávio Valente Ruivo, biólogo integrante do Instituto Orbis, haveria outras maneiras de resolver o problema de abastecimento do município. A entidade caxiense, juntamente com o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais e a União Pela Vida, de Porto Alegre, entraram com ação judicial contra o corte das árvores em 2010, argumentando que não haveria concordância do Ibama quanto aos estudos de alternativa de localização da barragem.
O processo foi encerrado no TRF4 porque, conforme Valente, as entidades não tinham capacidade para recorrer a instâncias superiores, mas a discordância permanece.
— Não concordamos com a barragem. Não vemos como uma necessidade para Caxias, com as tecnologias e o conhecimento que já existe — defende.
Ele cita, como alternativa, a substituição da tubulação antiga da cidade, para minimizar o desperdício de água. O argumento central do ambientalista é que, mesmo com a compensação ambiental, não há como prever o impacto que a construção de barragens causa no ecossistema. Ele cita o exemplo de São Paulo, em que a extinção de florestas teria diminuindo o volume de chuvas.
— Quando se faz uma área de barragem, se desestabiliza o sistema natural. E aí a evaporação, transpiração das árvores, com a transferências de água para atmosfera, deixa de existir. A evaporação da água do lago não faz o mesmo trabalho — diz.
O biólogo considera ainda que é necessário uma mudança de concepção que torne a sociedade corresponsável pelo cuidado com a água.
— Temos de pensar na privatização do problema: a indústria que vai se instalar, que capte água para seus processos e faça o tratamento, e não esse procedimento de agora, em que a população tem de pagar. Os grandes condomínios e residências também, com cisternas, sistema de captação de água da chuva. Temos de ter incentivos, do Estado, do município e federais, para fazer o nosso papel e tentar manter o que temos, com políticas públicas que continuem além de quatro ou oito anos — argumenta.
Futuro
O planejamento para o abastecimento de Caxias está focado nas barragens. Depois da Marrecas, que deve suportar a demanda até 2040, estão previstas na legislação municipal áreas para três novos reservatórios (Piaí, Sepultura e Mulada).
PENDÊNCIAS
:: Vazamentos
:: No período de testes, foram constatados vazamentos nas ombreiras da barragem (laterais em contato com a rocha) e também no paredão de concreto. Isso motivou pedidos de investigação e gerou desconfiança quanto ao valor da obra, estimado em R$ 130 milhões em 2009, mas com investimento final de R$ 259,6 milhões.
:: Reportagens do início de 2014 davam conta de que o vazamento havia chegado a 60 litros por segundo, equivalente ao consumo mensal de mil famílias.
:: Em setembro, época que a represa começou a abastecer as primeiras residências, as perdas haviam diminuído para 15 litros por segundo, devido ao deposito natural de substâncias que estão na água nos poros do concreto.
:: Para reduzir as infiltrações nas ombreiras foram executadas injeções de calda de cimento nas áreas de contato com as rochas. Hoje, a infiltração nas duas ombreiras varia de dois a três litros por segundo, considerada normal dada a característica das rochas. Ainda há pontos de infiltração no paredão que, apesar de reduzidos, estariam em processo de carbonatação.
:: Contratos
:: O Samae ainda mantém uma parcela de valores retida de três contratos e é alvo de demanda judicial de uma das empresas contratadas para as obras.
:: Houve abatimento de pagamento na parcela final referente à construção da barragem porque o Samae teve de reparar por conta um trecho da tubulação até a estação de bombeamento. Também há valores retidos preventivamente porque a empresa enfrenta ações trabalhistas referentes à obra.
:: A empresa responsável pela construção da estação de bombeamento de água bruta não apresentou certidão negativa referente ao Cadastro Especial do INSS no fim da obra e também teve parte do pagamento final retido pelo Samae.
:: O mesmo aconteceu com a contratada para a construção da estação de tratamento, que também recebeu multa por pendências de correções solicitadas.
:: Ainda existe uma demanda judicial em que a empresa responsável pela implantação de trechos da adutora de água bruta e de água tratada pleiteia indenizações do Samae por supostos custos não previstos no projeto inicial. A ação ainda não foi julgada.