Os debates que sucederam o estupro seguido de morte de Naiara Soares Gomes, sete anos, em Caxias do Sul, envolveram esferas nos âmbitos sociais, institucionais e políticos. Diferentes perspectivas do fato geram reflexões desde então, e as cobranças começam a se intensificar, especialmente com relação aos órgãos envolvidos na rede de proteção de crianças e adolescentes.
Para abordar o assunto, o Pioneiro buscou a opinião dos juízes da Vara da Infância e Juventude de Farroupilha, Mário Romano Maggioni, e de Caxias, Leoberto Brancher. Os dois magistrados têm longa experiência em processos que envolvem os direitos das crianças e adolescentes. Maggioni é referência em adoções bem-sucedidas, enquanto Brancher é reconhecido no Brasil e no Exterior pelo trabalho de pacificação social que vem empreendendo há anos.
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Os dois juízes concordam quanto à necessidade de reflexão sobre as lacunas nos sistemas institucionais. Em instância judicial, os magistrados divergem ao discorrer sobre um dos pontos polêmicos do caso: teria sido correta a decisão de encaminhar Naiara para familiares de Caxias após a destituição da guarda maternal determinada em Vacaria? A criança teve uma vida atribulada desde o nascimento: não teve a criação da mãe, passou por abrigamento e acolhimento com parentes antes de se estabelecer com uma família do pai (já falecido) em Caxias do Sul.
Confira as entrevistas.
ENTREVISTA: JUIZ MÁRIO MAGGIONI
"Só o amor não é suficiente. É preciso avaliação mais profunda"
Pioneiro: O que se deve refletir após a sucessão de eventos que vitimou Naiara? A violência que aconteceu a ela é algo que não deveria acontecer na sociedade. Aí você vai ver o abusador, ele provavelmente vem de uma família completamente desestruturada também. Houve falhas gravíssimas que culminaram nesse ponto. Ela (Naiara) também passou por diversas dificuldades de ordem familiar, tem diversos outros irmãos, com os quais eu ficaria com olhar atento neste momento. O que está sendo feito com eles? Como estão sendo cuidados? E isso deve ser feito com bastante profundidade para evitar que se repitam casos assim. Outro debate pertinente é como as famílias estão preparadas hoje para cuidar de suas crianças... Pais que são bem preparados são essenciais. A família tem de ser bem estruturada e depois a comunidade. Uma comunidade que prima por ser agressiva não vai querer que as pessoas não saíam por aí matando. Se defendo que o melhor é dar arma para todo mundo e matar todo mundo que não presta, daqui a pouco alguém vai entender que eu não presto e vai me matar. É fundamental ter olhar atento para crianças nas escolas. Qualquer problema de agressão comunicar ao Conselho Tutelar. Uma criança de sete anos sozinha no trânsito tem grande possibilidade de ser atropelada. O certo é que os pais enxerguem isso, mas se isso não ocorre, a própria escola ou até os motoristas que passam por essa criança podem vê-la sozinha na rua.
Um ponto que se debate são os encaminhamentos com relação à guarda de Naiara. Considerando que o senhor lida diariamente com casos de destituição familiar, qual sua posição sobre esse assunto? Existem artigos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)que preconizam que se mantenha a criança na família biológica. Por outro lado, há diversos artigos que estabelecem que essa família deve garantir à criança ou ao adolescente o desenvolvimento integral. Temos que jogar com esses dois critérios. Até que ponto se deve manter com essa família genética ou não? A Constituição, que fala pouco sobre isso, só dá premissas sobre os deveres das famílias com as crianças, o Código Civil diz o que os pais não devem fazer no sentido de conduta criminosa e maus-tratos, e o Estatuto impõe o que se deve fazer em mais detalhes. A destituição do poder familiar está atrelada ao que não se deve fazer, mas ao meu ver, deve ser considerado o que se deve fazer. Porém, é preciso analisar o conjunto todo. Se você entender que tem o artigo que se deve esgotar todas as possibilidades para manter na família genética e levar ao pé da letra... bom, aí nunca se vai tirar da família, sempre haverá algum parente. Mas tem de dar luz aos outros princípios: da proteção integral da criança, que faz com que o dispositivo que indica à família cuidar da criança perca a força.
Embora o senhor não considere necessariamente prioritária a questão genética, ainda assim considera a manutenção dos vínculos familiares nos casos que analisa? Cada processo de destituição familiar meu tem média de 600 folhas ou mais. Isso porque analiso toda a conjuntura envolvendo medidas aplicadas e histórico da família. Não é por conta de um ou dois fatos e sim o conjunto. Há sempre a possibilidade de nos equivocarmos, mas há um questionamento crucial: se eu deixar a criança ou adolescente com a família, ela vai ser cuidada? Não é só a condição financeira, pesa também o ambiente agressivo onde a criança está inserida, se há violência doméstica, uso de drogas constante, criminalidade. Se eu deixar uma criança nesse meio, o que é que vai acontecer? O Estado, como um todo, tem obrigação de propiciar meios para que essa família forneça ambiente adequado à criança. Mas, em muitos casos, familiares não aderem e não cumprem as medidas. Poxa, se o Estado está oferecendo as medidas e a família mesmo assim não adere, para mim são motivos pela destituição familiar.
Mesmo parentes sem relação direta com o núcleo familiar envolvido com criminalidade podem ser questionados? Muitas vezes, há leitura que genética por si só é boa para a criança, mas não é verdadeira. Não é porque é pai e mãe que vão fazer bem para essa criança. Outras situações, a criança é acolhida, aí tem um tio lá de longe que nunca participou e vem querer a guarda. Vai dar certo? A mãe é usuária e vive na rua e vem a avó e diz que tem condições de criar a criança. Tem de haver análise bem criteriosa. Por que a mãe está nessa condição? A avó deu condições para a filha? Então por que ela se tornou usuária de drogas? Nesse caso pergunta-se novamente, a avó vai cuidar bem do neto? Não deve haver prejuízo para a criança. Muitos dizem que morrem de amor pela criança, mas o amor não é suficiente. É necessária avaliação psicológica e da assistência social. Se houver entendimento que o Estado deve investir indefinidamente na pessoa adulta no sentido de resgatar ela, e a criança ficar junto com essa pessoa enquanto se cuida do adulto, a criança vai ser obrigada a conviver com esse adulto que não soube cuidar de si próprio por anos e anos.
A rede de proteção à criança e ao adolescente é falha? Falta reflexão. Tem profissionais que fazem análises profundas e entendem muito diferente de mim, tudo bem. Os meus casos eu tento analisar com muito amor, carinho e profundidade. Quando uma criança está abandonada, é um problema da sociedade toda, mas o primeiro órgão é o Conselho Tutelar, que é responsável por aplicar as medidas. Caso as medidas não surtam efeito, entra o MP para tentar cobrar, aí, em caso de insucesso, vem ao judiciário. Esse trabalho prévio precisa ser feito com seriedade, porque o último passo é o judiciário que vai analisar a destituição desse vínculo familiar. Já vi laudos sociais em que a avaliação consiste no seguinte: casal trabalha, renda é "tanto", casa tem "tantas" peças, logo, família tem condição de ficar com as crianças. Precisa haver mais profundidade do que isso e analisar o histórico da família, da pessoa, toda a questão social.
ENTREVISTA: JUIZ LEOBERTO BRANCHER
"Essa família tem de ser homenageada pelo esforço"
Pioneiro: O momento é de reflexão ou de apontar os supostos culpados pela morte de Naiara Soares Gomes? Leoberto Brancher: Existe um componente fatalidade que não há como abstrair, mas existe sim a necessidade de reflexão. Marshall Rosenberg, criador da comunicação não violenta, tem uma frase em que diz que o luto é uma celebração ao contrário: no momento de violência ou de um crime que produziu sofrimento, a primeira coisa que devemos fazer é passar pelo processo de luto e, em seguida, refletir sobre o que está nos ensinando. Permitir que a gente se conecte com a dor que ela provoca sem necessariamente cair no automatismo dos julgamentos, porque a tendência é imediatamente sair em busca de um culpado, seja a família ou a rede de proteção que, supostamente, não resolveu o caso adequadamente. Da soma da compreensão de erros, você pode criar banco de dados, averiguar com mais consistência e fazer disso um aprendizado, e esse momento que vivemos agora é de aprendizado.
O que se pode avaliar com relação aos encaminhamentos no caso Naiara? A decisão judicial é indiscutível e irretocável. O trabalho em Vacaria foi muito eficiente, considerando o contexto de família dispersa, crianças nas ruas, passando fome. Quando os órgãos profissionalizados (Conselho Tutelar, abrigo, escola, CAPS, MP, Justiça), foram acionados, eles funcionaram. Nós temos prescrição legal que favorece a manutenção dos vínculos biológicos, porque (no sistema de priorizar vínculos biológicos) também se verifica vínculo afetivo na maioria dos casos. Essas crianças não só faziam parte de um grupo de oito irmãos, como de uma família extensa (em Vacaria), e essa tia (Maria de Lourdes Gomes), com quem elas tinham convivido quando ela morava em Vacaria, que, por sua vez, tinha um laço com o pai a quem ela própria criou. Então, tem todo um contexto de preservação da estrutura emocional dessas crianças. Porque a solução pode ser muito simples "porque a mãe é drogada, coloca as crianças para a adoção", mas não é simples assim. As pessoas simplificam demais. A gente precisa ter um pouco mais de compreensão. Romper vínculos afetivos com criança pode causar danos severos comprometendo o próprio processo de adoção. Essa ruptura (de vínculos familiares) deve ser feita em últimos casos, por isso a lei prevê a manutenção de vínculos.
A manutenção dos vínculos familiares foi correta? Os pequenos foram trazidos para Caxias e colocados num contexto familiar bastante positivo, embora com a vulnerabilidade da pobreza. Quando as crianças vieram, a renda familiar era de dois salários mínimos. Viviam nessa casa a tia, a filha da tia e o neto com 18 anos. A senhora tinha renda de R$ 1 mil, a filha ganhava R$ 960 e aí receberam três crianças. É uma situação bastante frágil. Eles têm uma família extensa, significativa. Ali, essa família se dava forças e ia se mantendo. Essa família tem de ser homenageada pelo esforço que fez. O fato de a criança ir a pé para a escola era uma contingência de uma família que lutava com muita exaustão, mas com afeto, para dar conta das dificuldades. Dentro desse quadro de impossibilidade econômica, a criança teve que fazer esse percurso. Claro, no momento ela deveria estar acompanhada de um primo, é um caso fortuito, a cabeça de um adolescente. Tinha 15 anos, espera-se um pouco de responsabilidade, mas também é "cabeça de vento".
Houve falha? A decisão judicial foi plenamente razoável e nos permitiu compreender a presença de uma rede de atendimento funcional em Vacaria. Talvez em Caxias pudesse ter sido aprofundada mais a discussão a respeito de a família ser frágil economicamente. Poderia ter-se avaliado que a limitação de renda pudesse gerar dificuldades e houvesse tido avanços em relação às políticas públicas para dar suporte e, quem sabe, oferecer guarda subsidiada... que é usado eventualmente para apoiar famílias que acolhem crianças para tirar de abrigo. Talvez pudesse ter sido acionado esse mecanismo mas, nesse sentido, não houve procedimento para tratar o caso aqui. Talvez com uma condição de renda, essa família pudesse ter se estruturado melhor.
A rede de proteção em Caxias tem estrutura suficiente para atender à demanda? O Conselho Tutelar em Caxias é deficitário. A cidade tem de fazer opções mais claras sobre suas prioridades de investimentos. Vai cuidar do quê? Das ruas? Do asfalto? Ou das pessoas? Sem excluir cuidados com infraestrutura, que são importantes, mas são escolhas necessárias quando o orçamento enxuga. Deveria haver um (Conselho Tutelar) a cada 100 mil habitantes. Nesse caso, já deveriam ter cinco conselhos (em Caxias) e temos só dois. Os abrigos (de adoção) funcionam, mas estão superlotados, o serviço social é deficitário em quantidade e qualidade. Temos pouca disponibilidade para cuidar com esmero cada caso e não conseguimos articular ou ter a visão criativa de que esse caso poderia ser tratado melhor. Eu gostaria de pegar cada caso e "fazer artesanato", mas eu tenho que produzir em série. Podemos questionar também a qualidade do serviço social: qual o nível de resolutividade das intervenções? Não estou questionando o serviço em si, mas a concepção por trás dele. São ilhas de atuação: assim como a sociedade olha que esses casos são problema do governo, os setores do governo também olham para o próprio umbigo.
O que se pode abstrair desse cenário? É preciso compreender a complexidade dos sistemas. "Vamos decapitar o estuprador e está resolvido", "vamos tirar as duas crianças que sobraram"... Mas não é assim simples. A gente precisa compreender é a origem disso, a qualidade do sistema de participação comunitária e o cuidado com as crianças. Estamos vivendo um fenômeno de dissociação do senso de comunidade. As crianças são um "problema" exclusivo de sua família, ou de seus pais, ou das redes especializadas. Está cada vez mais ausente esse âmbito de colaboração, corresponsabilidade, de "comum unidade". Isso gera um desvio de atenção daquilo que é essencial: cuidado com o outro e especialmente cuidado com o outro vulnerável, que são as crianças. Se a gente parasse um pouco para fazer esse luto da Naiara com sabedoria, parássemos para fazer disso não uma passeata ou um protesto pela morte do estuprador ou pedir mais guardas nas escolas, mas um convite à reflexão das pessoas sobre o que nós nos tornamos enquanto sociedade e, mais proximamente, porque perdemos o senso de comunidade. A questão é: como eu me disponho? Como eu consigo abrir meu foco de percepção para notar que aquilo é uma criança caminhando sozinha. Ou mesmo, se eu percebi, como me vejo relacionado a isso? Tenho algo a fazer? Por que não tenho essa visão de que eu posso acompanhar essa criança até a escola e falar "eu vi essa criança sozinha, será que vocês podem ligar para o Conselho Tutelar?". Como as pessoas poderiam se disponibilizar mais? Participar e se envolver mais para que esse problema não ficasse só a cargo da família ou do Estado?