A catástrofe causada pela chuva em maio no Estado será para sempre lembrada pelas mortes, perdas econômicas e desafios de logística que surgiram após o fenômeno climático. Um aspecto gerado por ela, o da solidariedade, também ficará marcado para sempre na história. Na Serra, deslizamentos de encostas bloquearam estradas do interior e a ligação com a capital ficou por dias comprometida. Foi então que a ajuda mútua entre empresários amenizou perdas que poderiam ser ainda maiores. Isso mesmo entre concorrentes.
Perecível e de durabilidade muito curta, o leite produzido em municípios como Paraí, Casca e Nova Bassano foi escoado pela Cooperativa Santa Clara, de Carlos Barbosa, mesmo que os produtores não fossem seus cooperados.
Vendida para indústrias instaladas em Arroio do Meio e Lajeado, cidades amplamente afetadas pela enchente, a produção foi industrializada pela concorrente até que os caminhos fossem liberados.
O diretor administrativo da Santa Clara, Alexandre Guerra, calcula que mais de 1,2 milhão de litros de leite foram salvos na primeira semana de maio em uma parceria entre as cooperativas:
— A Dália não tinha como receber o leite, estava ilhada. Naquele momento não existia concorrência, já temos dentro de nós esse espírito de cooperar um com o outro pela fragilidade do produto, e como estamos em um período de produção mais baixa, de 800 mil litros por dia, tínhamos essa capacidade para auxiliar — conta.
Não criar prejuízos para os concorrentes e minimizar as perdas dos produtores foi, segundo Guerra, as prioridades de um momento que graças à trégua na chuva já foi encerrado. No entanto, os três dias que a filial de Casca precisou ser movida por geradores a óleo diesel não serão esquecidos. A estimativa é de que 45 mil litros de leite tenham sido perdidos.
— A própria Santa Clara fez descarte de leite porque os caminhões não chegaram. No dia seguinte achamos alternativas que aumentaram até o triplo das distâncias. Parceiros nos auxiliaram com insumos e nosso objetivo de sempre captar o máximo de leite do interior, independentemente de quem o produtor era cooperado, foi atendido — diz.
Prejuízo milionário e parceria com o vizinho
No interior de Caxias do Sul, em Santa Lúcia do Piaí, o empresário Marcelo Fenner, 46 anos, viu seu vizinho e concorrente perder tudo. Poderia absorver o mercado das quase 15 toneladas que a família Witt produzia por mês de embutidos, torresmo, banha e cortes de porco. Mas pensou diferente e ofereceu sua estrutura para que o trabalho continuasse.
— É muito triste ver alguém perder tudo do seu lado. Temos condições de ajudar e ajudamos, eu não ia conseguir continuar trabalhando sabendo que ele não podia. E no mais tem trabalho para todo mundo é só querer trabalhar — diz Fenner.
Desde que um deslizamento de terra destruiu, além da indústria, as duas casas da propriedade instalada às margens da Estrada Municipal João Edgar Jung, Jonas Witt, 50, trabalha com seus 12 funcionários no pavilhão do vizinho.
— Calculamos que o prejuízo tenha sido de até R$ 12 milhões. Perdi quase tudo, maquinário, estoque, caminhonete. Se salvaram os caminhões refrigerados, que estão sendo usados. Se ele não tivesse tido me chamado, não iria reconstruir. Ia cancelar o CPNJ e fazer o acerto com os funcionários. Agora o terreno já foi plainado e pronto para fazer a nova planta (industrial), vai demorar uns oito meses para levantar tudo e, nesse período, meus clientes já passariam a comprar de outro — conta Witt.
Do pouco que sobrou até o novo local de trabalho são cerca de 600 metros. A estrutura emprestada é utilizada após as 18h. Quando o expediente de um se encerra, o do outro começa e avança pela madrugada adentro.
— Trabalhamos também aos sábados e ali conseguimos fazer tudo o que fazíamos. Quando me ofereceu, pensei logo na regularização com a Secretaria da Agricultura, que nos permitiu continuar trabalhando em outro lugar. Deixei claro aos meus funcionários quais seriam as condições e todo mundo aceitou. Já faz 20 dias dessa nova realidade — complementa Witt.
Cozinha de Recomeços
Foi cozinhando para desabrigados no Vale do Taquari e Região Metropolitana de Porto Alegre que uma ideia surgiu. Alimentar quem precisa é fundamental, mas é preciso olhar também para os restaurantes que foram danificados pela enchente e de alguma forma precisam recomeçar.
Se depender da iniciativa de chefs de cozinha de todo o Estado, o projeto Cozinha de Recomeços será o responsável por isso. A primeira etapa, já em andamento, monta agora a rede de apoio e mapeia as necessidades de cada um dos estabelecimentos que já foram visitados.
Os voluntários estão dispostos a viabilizar novos equipamentos, indicações e até aulas online para reerguerem um setor que já tinha sido amplamente afetado na pandemia de covid-19 e que, para o chef Rodrigo Bellora, é parte da cultura das cidades:
— Restaurantes se doaram muito para ajudar nas cozinhas de campanha, mas essa galera também precisa de ajuda. Restaurantes são pontos de cultura, com outros papéis além de encher a barriga. É onde as pessoas celebram suas vidas e queremos manter a identidade gastronômica desses lugares, porque se não vira terra devastada — diz Bellora.
O Cozinha de Recomeços é um movimento beneficente e voluntário que reúne além de Bellora os chefs e entusiastas da gastronomia Marcos Livi, Giordano Tarso, Ricardo Dornelles, Israel Bertamoni, Ana Fagundes, Fabrício Goulart e Cristina Leonhardt. Parceiro do projeto, o publicitário André Lima tem conferido o interesse do setor em aderir à campanha:
— Quando a gente iniciou não tínhamos dimensão das diferentes dificuldades que iríamos encontrar pelo caminho. Os estabelecimentos têm atuações e estruturas diferentes. O desafio é conectar pessoas que precisam com quem quer ajudar e ser efetivo nas necessidades. Temos um formulário relativamente extenso que queremos saber tudo, desde a especialidade, história, público-alvo e como foi atingido pela enchente — explica.
A iniciativa divulga formulários para ajudar e também para ser ajudado.