Falar da morte ainda é um tabu, mas é necessário. No intuito de desmistificar esse tema e relembrar que para ser um doador de órgãos a pessoa precisa avisar a família, a Unimed de Caxias do Sul entregou tatuagens temporárias divulgando a campanha #QueFiqueDito. Essa divulgação, realizada nos últimos quatro anos no Dia Nacional da Doação de Órgãos — 27 de setembro —, instigou que Flávia Dall Agnol, 41 anos, marcasse na pele definitivamente o desejo. A moradora do bairro Panazzolo, em Caxias, tem no antebraço esquerdo a frase "Doadora de Órgãos", em volta de um coração humano.
— Eu fiz essa tatuagem em junho de 2021, mas foi uma ideia que surgiu em 2019, após ver nas redes sociais de uma amiga a divulgação da campanha. Sempre tive preocupação de como seria quando eu já não pudesse escolher por mim. Por isso, tatuei em um local onde qualquer enfermeira(o) ou médica(o) pudesse ver também, pois não sei como será esse momento — conta Flávia.
No Brasil, atualmente, não há nenhum documento oficial que precisa ser feito para sinalizar a intenção de ser um doador. Portanto, a única forma é a família autorizar que a equipe médica o faça em casos de morte encefálica. A coordenadora da Comissão Intra-hospitalar de Doação de Órgãos e Transplantes de Tecidos (Cidot) da Unimed, neurologista Paula Gasperin, explica que a campanha com a tatuagem temporária vem como um objetivo lúdico para sinalizar o desejo.
— Antigamente, se colocava o adesivo na identidade para indicar quem era doador. Hoje em dia não se pode mais, ficou fadado ao conhecimento do familiar essa informação. A gente pensou na tatuagem como uma forma de simbolizar que tem que estar escrito em algum lugar — salienta Paula.
Segundo a engenheira Flávia, o assunto surgiu no meio da família após a perda de um irmão, em 2002. A moradora de Caxias acredita que é muito importante o tema ser tratado, pois fala sobre empatia, palavra que ela carrega como filosofia de vida. Na visão dela é uma sensação de paz saber que a morte dela pode significar o recomeço para alguém:
— Sempre falei com a minha família, principalmente com meu filho, sobre esse desejo de ser doadora de órgãos. E todos respeitam minha decisão. Tivemos um momento difícil, quando meu irmão faleceu, aos 24 anos. Na época, minha irmã levantou essa questão e todos fomos a favor, mesmo que naquela situação não tenha sido possível fazer a doação. Se você pode mudar a vida de alguém, porque não o fazer?
De acordo com dados coletados pela Central de Transplantes do Rio Grande do Sul, que controla a fila de espera por órgãos no Estado, as principais negativas dadas pelos familiares para evitar a doação são o desconhecimento da vontade da pessoa e o medo de como ficará o corpo do doador.
— O corpo é entregue exatamente como a família viu pela última vez. Para a doação de órgãos, a pessoa não é mutilada — afirma Paula.
Passo a passo
Paula explica que existem dois tipos de doadores: os vivos e os mortos. Em vida, é possível doar um rim, parte do fígado, parte do pulmão, alguns tecidos, como cartilagem e pele, e medula óssea. Quando morto, a família é abordada pela Cidot e orientada. A pessoa passará por um protocolo que comprove a morte encefálica e, neste caso, todos os órgãos e tecidos que estiverem em condições podem ser doados.
Para a doação, a pessoa precisa ter entre dois e 80 anos, com exceção das córneas, cuja doação é possível independentemente da idade. A inviabilidade se dá quando há infecção generalizada, o paciente é oncológico ou, ainda, em casos em que a morte da pessoa foi violenta ou é desconhecida.
O protocolo para comprovar a morte encefálica é aberto após a pessoa estar há pelo menos seis horas no hospital. Ela será monitorada e deve estar em coma aperceptivo — significa que o paciente não percebe nada do que se faz com o seu corpo. Em exceção, estão casos de o paciente ter uma parada cardiorrespiratória em casa. Nesse contexto, ele precisará estar há 24 horas em monitoramento no hospital. O protocolo é feito por médicos neurocirurgiões ou neurologistas e médicos da UTI ou da emergência.
— São feitos testes de reflexos do cérebro, testes de apneia, regulagem da concentração de oxigênio e observa-se por 10 minutos. Se ele não tiver nenhum movimento voluntário, confirma-se a morte encefálica. Uma hora depois são repetidos todos os testes e, se novamente não houver movimento, conclui-se o protocolo. A família é convidada a acompanhar todo esse processo — explica a coordenadora da Cidot.
Confirmada a morte e a autorização da família, a Central de Transplantes é acionada. Os dados desse doador são disponibilizados e inicia-se a busca por um receptor compatível. Localiza-se a pessoa e a equipe de transplantes mais próxima e, depois, os órgãos são retirados. Esse processo pode levar horas, dependendo de cada caso. Por isso, segundo Paula, muitas famílias desistem por já estarem enlutadas devido à perda.
Não há limite para a quantidade de órgãos doados, desde que viáveis. A família doadora, após o processo, recebe da família receptora uma carta, anônima, em agradecimento. O contato é feito via Central de Transplantes e informado apenas o sexo e a idade do receptor. Depois, se houver interesse de ambas as famílias, a Central faz a intermediação para que elas se conheçam.
No caso de doadores vivos, o rim é o órgão mais necessitado na fila de transplantes. Somente na sexta-feira (6), 37.404 pessoas precisavam de um. A médica explica que os pacientes que aguardam por um rim são aqueles em que não houve compatibilidade com familiares.
— Ao ter compatibilidade entre a família e o paciente, o processo é feito de forma direta. Os que estão na fila são aqueles que não tem compatibilidade com familiares — afirma Paula.
Fila de espera no Brasil é única
Pessoas atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) têm as mesmas possibilidades de um paciente da rede privada. O que pode ser determinante para uma pessoa receber antes da outra é a gravidade da situação, explica a médica da Unimed. O paciente passa por constantes avaliações da equipe da Central de Transplantes e, conforme a doença vai se agravando, ela pode ser passada na frente da fila.
Dados do Brasil
:: Em 2023 até o dia 6 de outubro, 6.738 pessoas haviam sido transplantadas.
:: Deste total, 4.220 foram homens e 2.518 mulheres.
:: Em 6 de outubro, 40.644 pessoas esperavam por transplante de órgãos no Brasil.
:: Deste total, 23.834 são homens e 16.810 são mulheres.
:: A faixa etária que mais precisa de órgãos, tanto de homens quanto de mulheres, é entre 50 e 64 anos.
:: O rim é o órgão mais necessitado: 37.404 pessoas estão na fila. O fígado vem em segundo lugar, com 2.218.
:: No Rio Grande do Sul, em 6 de outubro, 1.866 pessoas aguardavam na fila.
:: O Estado é o sexto do país com mais pessoas aguardando por órgãos. São Paulo puxa a fila, com mais de 19.750 pessoas.
* Fonte: Ministério da Saúde