Um detalhe impede que Caxias do Sul, segunda cidade mais populosa do Estado, conheça a realidade local sobre a pandemia: a baixa oferta de testes. Enquanto o município avalia apenas os pacientes internados com sintomas graves e integrantes dos grupos prioritários, que indicam a possibilidade de infecção por coronavírus, cidades vizinhas como Bento Gonçalves e Farroupilha compraram testes rápidos para dimensionar o contágio do vírus nas cidades e se deparam com números que chamam a atenção. Caxias, por sua vez, segue a portaria do Ministério da Saúde (MS) e o protocolo do Governo do Estado que determina realizar os exames em casos graves e em profissionais da saúde — foram 449 testes até ontem. Já as outras cidades decidiram ampliar a testagem e essa opção pode mostrar um cenário mais perto da realidade em relação ao número de contaminados.
Bento, por exemplo, registrou em um só dia 29 novos casos, segundo o boletim epidemiológico divulgado no dia 4 de maio. Com a carga de testes rápidos, o município alcançou a marca de 145 pacientes em um total de 300 testes rápidos e cerca de 350 PCR. Farroupilha seguiu no mesmo caminho, comprou uma carga maior de insumos para diagnósticos e já supera a quantidade de infectados que Caxias do Sul: são 63 positivos. Já as cidades de Carlos Barbosa e Garibaldi, que realizam exames através do Laboratório Central de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (Lacen/RS) vê sua curva entrar em ascendência. São pontos que soam estranhos, já que Caxias cresce de forma estável.
Leia mais
Bento Gonçalves registra 29 infectados pelo coronavírus em 24 horas
Caminhoneiro de Caxias do Sul morre por covid-19 na Bahia
Mortes por coronavírus são confirmadas em Bento e Farroupilha nesta segunda-feira
Primeiro caso de coronavírus é confirmado em São Marcos
Os números podem passar a falsa sensação de que a pandemia está controlada — eram 60 casos confirmados até ontem —, o que justificaria o movimento no centro da cidade e até as aglomerações que se formam em alguns pontos. Mas segundo o secretário municipal da saúde, Jorge Olavo Hahn Castro, existem motivos para esse quadro:
— (Os números) não são falsos. Testamos pacientes com gravidade, portanto, o número de pacientes é real. Atribuo esse cenário às medidas de previsão tomadas com antecedência, como o isolamento social, mudanças na higiene, como o uso de álcool gel, máscaras, separação de atendimentos para síndromes gripais nos postos de saúde.
Ao mesmo tempo, o número de pessoas que procuraram atendimento médico desde a última semana de março até o final de abril é expressivo: 926 moradores. Por ter sintomas leves de uma gripe, nenhum deles passou por exame para o coronavírus. A orientação era de que ficassem em isolamento por 14 dias. Ontem, a diretora da Vigilância em Saúde, Andréa Dal Bó, por meio das redes sociais afirmou que há sim exames em pacientes assim, porém, dentro dos parâmetros do Ministério da Saúde.
— Até 27 de abril, tivemos 843 pessoas com síndromes gripais. Destas, 571 não foram testadas por não atenderem os critérios do MS. Isso não significa que todas são covid-19.
Andréa abordou a questão da taxa de infectados e reforçou que há subnotificação em Caxias.
— As pessoas que estejam internadas com síndromes gripais e com falta de ar, é necessário que o médico pense na possibilidade de coronavírus e solicite que seja feito o teste. A Vigilância está trabalhando ativamente para descobrir quais são esses casos e orientando os profissionais de saúde e hospitais, para que isso seja amenizado o máximo possível — ressaltou.
Diretor da Área de Ciências da Vida da Universidade de Caxias do Sul (UCS), o professor Asdrubal Falavigna, aponta para a difícil gestão que obriga a limitar os testes:
— Se eu disser para fazer (teste) em todo mundo que apresentar febre, quando chegar no paciente que necessita eu não tenho o exame para oferecer. Eu imagino mais essa sensação, do que não querer fazer o diagnóstico. Se tenho vários laboratórios habilitados, tenho os insumos de fácil aquisição e bom preço, abro para todo mundo fazer. Acho que é preciso um ponto de equilíbrio. Aqui na Universidade (de Caxias do Sul) demoramos quase três semanas para conseguir os insumos. Esse é um problema — ressalta Falavigna.
Para o professor, a crença é de que à medida que houver mais laboratórios credenciados, automaticamente serão feitos mais exames.
— A lógica, quando se tem uma doença, é saber o que tem e qual é o tratamento específico. Como tudo em medicina parte de um diagnóstico preciso — complementa.
Essa dependência dos exames do Lacen vai continuar por um bom tempo. Por enquanto, o governo municipal só teve conversas com a UCS e ainda não saiu do papel a possibilidade de mais testagens. Os demais municípios citados nesta reportagem investiram, por conta própria, recursos para tentar entender melhor a sua curva de contágio e aonde estão localizados os pacientes. Caxias do Sul segue protocolos e na dependência do Governo do Estado para receber exames rápidos e aplicar na população. Até por isso, é impossível dizer que 58 casos representam a realidade da covid-19 na cidade.
QUATRO FATORES A CONSIDERAR
CAXIAS TESTA MENOS QUE OS MUNICÍPIOS VIZINHOS
É fato. Farroupilha e Bento Gonçalves decidiram sair na frente e testar por conta própria pacientes, o que fez aumentar o número de casos principalmente por meio dos exames rápidos. Caxias do Sul segue uma linha mais atrelada às recomendações do Ministério da Saúde e da Secretaria Estadual da Saúde: a prioridade é para pacientes com sintomas graves internados em hospitais e profissionais da saúde.
SUBNOTIFICAÇÃO
Caxias do Sul não sabe quantos infectados de covid-19 estão circulando pelas ruas. Bento Gonçalves e Farroupilha também podem não saber, mas têm um controle um pouco mais por terem ampliado a testagem. Essa subnotificação ocorre porque, segundo o secretário da Saúde, Jorge Olavo Castro, se um paciente estiver com quadro grave, ele será internado. Pessoas que tiveram contato com ele e estão assintomáticas ou com sintomas leves, a orientação é isolamento domiciliar e monitoramento, mas sem teste.
— As pessoas chamam de subnotificação, mas na verdade é uma conduta adotada pelo MS que o município optou por seguir porque os casos que não testados são de pacientes com sintomas leves ou assintomáticos.
TESTES PRIVADOS
Conforme a prefeitura, todos os hospitais particulares de Caxias usam laboratórios credenciados, então não haverá casos em que o exame não seja considerado. Conforme o secretário da Saúde, há esse critério porque a coleta por PCR é complexa e exige que seja verificado a validade do exame.
— Tem que validar os procedimentos, e se o laboratório não é credenciado o resultado não é considerado nos números do Estado. O credenciamento é necessário porque a coleta tem que ser feita por um laboratório confiável. Como os serviços de Saúde notificam a Vigilância Epidemiológica sobre os casos, se o paciente estiver grave, mesmo sem o credenciamento do laboratório, o Lacen fará uma nova coleta
AMPLIAÇÃO DE COLETAS
Caxias do Sul recebeu 1.360 testes rápidos e eles serão usados nos asilos para avaliação dos idosos. Nos demais casos, o município seguirá a orientação do Ministério da Saúde.
— Não vemos diferença no controle do vírus ao testar mais pessoas. Acredito que para combater o avanço dos casos, o mais necessário é o controle social, o uso de máscaras, hábitos higiene e manter a distância adequada uns dos outros — justifica Castro.
"Testagem pode auxiliar no planejamento do tempo e período do distanciamento social"
A infectologista Viviane Buffon lembra que a testagem é uma ferramenta estratégica de cada município. Ela pode embasar desde pesquisas como a que está sendo realizada pela UFPel em todo o Rio Grande do Sul e facilitar a construção de um quadro mais realista sobre a transmissão do vírus. Por isso, mostra-se uma estratégia até melhor para aqueles municípios que possuem poder de investimento e tem como ter uma amostragem maior da sua população.
— Considerar os testes dos laboratórios privados é, na minha opinião, uma oportunidade de vislumbrarmos os casos leves que não são internados ou mesmo que não fazem nenhum acesso a assistência pública. A testagem permite saber o porcentagem da população já exposta ao vírus e, talvez, possa auxiliar no planejamento do tempo e período do distanciamento social — ressalta a infectologista.
Asdrubal Falavigna segue num raciocínio muito parecido. Ampliar a testagem também se coloca como um fator psicológico para quem tem alguma síndrome gripal. Afinal, pessoas que moram com alguém que pertence ao grupo de risco precisam ter uma resposta mais direta. Colocar-se em isolamento interfere em todos os aspectos.
— Estamos falando de uma infecção, uma doença, que ficará por muito tempo. Não é apenas dois ou três meses, isso vai nos acompanhar mais tempo. Aonde se faz um diagnóstico correto, terá um manejo apropriado ou a pessoa vai estar sensibilizada que terá de ficar afastada do trabalho porque tem o coronavírus — crê Falavigna, que complementa:
— Faz uma diferença grande para quem tem família e mora com algum grupo de risco. Ele tendo algum sintoma, e pode ser uma amigdalite ou uma gripe qualquer, deixa a dúvida para o coronavírus. Aí essa pessoa precisará sair de casa e ficar 14 dias, parar o trabalho diário. O exame facilitaria este retorno para a atividade normal da pessoa.
"Teste rápido e PCR têm chance de falso negativo", diz especialista
A médica infectologista, Lessandra Michelim, que integra a diretoria da Sociedade Brasileira de Infectologia e é professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS), explica que os testes privados PCR têm sido aceitos para diagnóstico:
— Inicialmente tinha uma questão de validação pelo Lacen, mas agora todos os testes PCR da rede privada são aceitos para diagnóstico. Nós não testamos todos porque seguimos orientação do Ministério da Saúde, uma vez que não tem testes para todo mundo, a portaria determina que se dê preferência para os pacientes que estão internados e profissionais de saúde. É preciso ter uma ideia de profissional de saúde, tanto para ser afastado precocemente para não contaminar o paciente, quanto para ele ser protegido como estratégia de contenção hospitalar — explica.
Ela ressalta que há no mercado o teste por PCR para fazer o diagnóstico, as sorologias para testes rápidos e sorologias com avaliação de anticorpos de sangue total:
— O teste rápido tem chance de falso negativo dependendo da qualidade do teste, enquanto os testes sorológicos são um pouco mais confiáveis e o PCR é bastante sensível e específico e o falso negativo do PCR também pode ocorrer caso o paciente esteja numa fase mais tardia da infecção, por que muitas vezes a carga viral é baixa e aquele teste não é positivo.
Para ela, tanto PCR feito pelo Lacen, quanto dos laboratórios são iguais:
— São feitos da mesma forma, com a pesquisa de genes que são específicos para o coronavírus. Então tanto faz fazer no Lacen, quanto fazer em outros laboratórios que estão autorizados — finaliza.
Mesmo com mais testes, Bento precisa aguarda inclusão em sistema
Nem todos os casos testados em Bento Gonçalves entraram para o controle oficial da Secretaria Estadual da Saúde (SES), o que explica a diferença entre os dados divulgados pela prefeitura em relação aos números do governo do Estado. Conforme a SES, alguns exames começaram a ser encaminhados para análise em uma rede de laboratório privada há cerca de 20 dias. Após a liberação da contraprova e o atendimento a alguns critérios técnicos, na última sexta-feira, a secretaria passou a considerar os casos positivos desse laboratório como válidos. Por esse motivo, houve na data a inclusão de uma quantidade maior de casos de uma só vez, mesmo que distribuídos ao longo de vários dias. A secretaria frisa que, assim como os demais municípios do Estado, Bento Gonçalves ainda continua com uma diferença nos casos em relação a SES em virtude dos testes rápidos. Ou seja, os testes rápidos ainda não estão sendo informados ao Estado.
A secretaria municipal da saúde de Bento Gonçalves afirma que mantém contato constante com as autoridades estaduais para homologar os casos locais.