Nos últimos dias, a Serra Gaúcha viu os casos da covid-19 não só chegarem a cidades menores como também causarem mortes nesses locais. Mas como o novo coronavírus alcançou essas comunidades, o que explicaria o avanço do vírus para esses pequenos núcleos habitacionais?
A explicação para esse fenômeno não é muito diferente, guardadas as proporções, de quando o novo vírus chegou ao Brasil. Ele veio trazido por integrantes de uma camada mais rica da sociedade, por meio aéreo. Desembarcou primeiro nos grandes centros urbanos: São Paulo, no país, e aqui no Estado, em Porto Alegre. Cidades onde o índice populacional é alto, o que facilita a propagação, atingindo rapidamente mais e mais pessoas, mesmo com as medidas adotadas de controle.
Ocorre que o contágio não obedece limites territoriais, porque todos os dias pessoas transitam de um município para outro por diferentes motivos, mas principalmente a trabalho. Assim, além dos casos chamados importados, que chegaram à Serra vindos de outros países na fase inicial de contaminação, houve quem espalhasse o vírus desses grandes centros para as demais regiões.
Voltando o olhar para as pequenas cidades da Serra, segundo os gestores locais, elas têm ligação maior com municípios mais desenvolvidos, que formam polos regionais e se tornam referência, seja na área da saúde quanto na do emprego, devido a concentração de grandes empresas ou indústrias. São nelas que muitos habitantes do interior do Estado buscam trabalho, mas nem sempre eles deixam de morar nas suas cidades de origem, o que promove um fluxo diário de um local para outro. Ou então, quando eles passam a viver nas cidades maiores não deixam de visitar os familiares que ficaram no interior.
Monte Belo do Sul, Santa Tereza e Boa Vista do Sul acreditam que deve ter sido dessa forma que o novo coronavírus tenha chegado nas cidades, em função da ligação com Bento Gonçalves e Garibaldi, principalmente, mas também com outros locais onde o número de casos está subindo exponencialmente. Os municípios não têm três mil habitantes cada, mas já perderam vidas para a doença, mesmo com número baixo de casos confirmados.
Rotina mudou após primeira morte em Monte Belo do Sul
Foi em frente à praça, perto da igreja de Monte Belo do Sul, que a reportagem encontrou José Casagrande, 71 anos, conversando com outro morador na manhã de quinta-feira (7). Ele contou que os hábitos na cidade mudaram depois da morte de uma moradora no último dia 28 de abril. Mariliane Santin Bassanese, 52, tratava problema pulmonar há mais de dois anos. Havia passado longos períodos em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) por duas vezes antes daquela data. Ela sentiu-se mal durante a madrugada e foi cuidada pelo marido Edemar Luiz Bassanese, 51, até que o dia amanhecesse e ele pudesse levá-la à unidade de saúde do município.
A família mora em uma casa simples de madeira, sem pintura, com só parte dos vidros nas janelas, e já havia superado situações difíceis em função da saúde de Mariliane. Mas, naquela manhã foi diferente. Devido à gravidade do quadro, ela foi levada até a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) de Bento Gonçalves, onde morreu seis horas depois. A confirmação para covid-19 veio dois dias após o óbito. Ela também tinha diabetes. Talvez, por todo esse contexto, a cidade não acredite no diagnóstico.
– Diz que era daquilo (covid-19), mas vai saber se é ou não é. Aqui uns tinham máscaras, outros não tinham. Agora, o pessoal está se cuidando muito mais. Monte Belo está todo de máscara. Mas não é divertido, que nem uma vez, de ir na bodega fazer folia. Não dá mais, porcaria – comentou seu José.
Com exceção de um ou outro, praticamente todas as pessoas que encontramos usavam máscaras. Mas, o movimento era pequeno. Apenas na agência bancária havia fluxo de pessoas. Um pouco distante do centro, Edemar cumpria quarentena em casa com o filho de 26 anos.
– Foi muito rápido, da uma e meia da manhã até as duas e meia da tarde – lamenta o marido, referindo-se a velocidade com que a esposa piorou e morreu.
Mariliane foi sepultada no Cemitério de Santa Rita, em Monte Belo do Sul, sem velório e em caixão fechado, na presença do marido, do filho e de dois irmãos.
Edemar é um dos habitantes que vai todos os dias ao município vizinho, Bento Gonçalves, para trabalhar. O núcleo urbano fica distante apenas 18 quilômetros de Monte Belo do Sul, mas como ele atua no Vale dos Vinhedos, a distância é ainda menor. Ele mesmo admite que pode ter contraído o vírus e não ter tido sintomas. O filho também não teve. Eles não foram testados pela Secretaria de Saúde do município, que segue protocolo do Ministério da Saúde, para aplicação dos 60 testes que recebeu. Apenas profissionais da saúde e da segurança que apresentem sintomas são testados. Pai e filho foram orientados a ficar em isolamento domiciliar. Ainda existe a possibilidade de alguma visita ter passado o vírus a Mariliane, que praticamente não saía de casa. Portanto, dificilmente teria contraído o vírus na rua ou em algum estabelecimento.
Segundo a coordenadora da única unidade básica de saúde da cidade, Deise Tichota, Mariliane foi o primeiro e único caso confirmado de covid-19 até o momento. Algumas pessoas já tinham procurado a UBS com sintomas gripais, mas foram orientadas a ficar em casa. As pessoas que tiveram contato com a paciente e as famílias dessas pessoas também foram orientadas ao isolamento domiciliar. Ninguém foi testado.
– Nossa cidade tem muitos moradores que acabam trabalhando em Bento. Eles vão todos os dias para lá, acho que pode ser uma rota, mas temos que investigar melhor. Isso mexeu bastante com a cidade porque é um município pequeno, onde todo mundo se conhece. É uma preocupação, sim – ponderou Deise.
Medida adotadas
:: A utilização da máscara passou a ser obrigatória em Monte Belo do Sul desde o dia 1º.
:: Oferta de EPIs para os funcionários.
:: As agentes comunitárias de saúde intensificaram atuação junto às famílias.
:: São proibidas aglomerações e é obrigatório manter distanciamento no comércio.
Em Santa Tereza, cuidado com os que vêm de fora
O município de Santa Tereza confirmou na última semana (dia 5) a primeira morte por covid-19. A cidade teve outros dois casos – um recuperado e outro que ainda está hospitalizado. Segundo a secretária de saúde, Marinês Campestrini, não é possível determinar como o vírus chegou à cidade, mas ela acredita que tenha sido trazido por pessoas que foram visitar parentes.
A primeira pessoa que teve a confirmação da doença era uma mulher de 71 anos, que tinha problemas pulmonares, chegou a ser internada na UTI do Hospital Tacchini de Bento Gonçalves e se recuperou. Os familiares foram testados e deram negativo.
Depois, um homem de 85 anos, cardiopata severo, com várias complicações, procurou a unidade básica de saúde do município com sintomas, foi encaminhado à Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) de Bento Gonçalves e após ao Hospital Tacchini, onde morreu. Os familiares do paciente seriam testados na sexta-feira, para verificar se havia mais algum caso.
Um terceiro caso confirmado é de um homem de 85 anos, também internado no Tacchini, que é referência para a cidade que fica 30 quilômetros distante.
– Acreditamos que sejam visitas. O município é pequeno e os moradores recebem visitas, os filhos não deixam de vir – lamentou a secretária sobre o fato de nem todas as pessoas obedecerem às indicações de distanciamento social.
Nesse último caso, o homem teria recebido um filho de Lajeado e outro de Bento Gonçalves. A equipe que estava de plantão no feriado de 1º de maio atendeu ao chamado de ajuda para o paciente e ele foi levado ao Hospital Tacchini com sintomas da covid-19. Fez um primeiro exame que deu negativo e um segundo positivo.
A prefeitura recebeu 60 testes do governo estadual e fez compra de 150 testes por meio do Cisga, que ainda não foram entregues. A equipe da UBS da cidade foi testada após o surgimento dos casos. São três técnicos em enfermagem, um enfermeiro e dois médicos para atender aos 1,8 mil habitantes. Um terceiro médico deve chegar à cidade. Mas a ideia é testar 10% da população.
– Nossa preocupação são os finais de semana, quando recebemos bastante gente de fora, que vem passear, ciclistas, motociclistas. Tivemos que isolar as praças, porque tinham grupos, e não são da nossa população. Fizemos barreiras sanitárias, oferecendo máscaras para quem não tinha. Nossa preocupação maior é com essas pessoas que vêm de fora – ponderou a gestora da saúde municipal.
Algumas medidas adotadas
:: Destinação de um sala específica para atender aos pacientes que chegam com sintomas gripais. Ambiente que passa por posterior desinfecção. Além disso, todos os profissionais têm EPIs, garante a secretária.
:: Na sexta-feira foi feita desinfecção das ruas do Centro e as entradas.
:: Município colocou faixas nas entradas da cidade alertando sobre o uso obrigatório de máscaras.
Ambientes de trabalho levaram vírus a Boa Vista do Sul
Em Boa Vista do Sul, o novo coronavírus foi detectado inicialmente em um morador que fabrica embutidos e vende os produtos em outras cidades da região. De acordo com o secretário de saúde do município, Adelar de Siqueira, o paciente pode ter adquirido o vírus nesse fluxo e, a partir daí, contaminado o sogro de 81 anos. O idoso tinha problemas pulmonares, chegou ser internado no Hospital Beneficente São Pedro, em Garibaldi, mas morreu em decorrência da covid-19 no dia 5 de maio, colocando o município no mapa de óbitos na região.
Há três núcleos de contágio na cidade. Um é de três empregados de uma empresa de laticínios que transporta leite para outras cidades. Outro é de dois casos positivos de pessoas que têm familiares funcionários do frigorífico Nicolini, de Garibaldi, onde houve surto da doença. Um oitavo caso confirmado é de uma idosa, familiar de um professor de academia que atua em Garibaldi. Ele não chegou a ser testado.
Segundo Siqueira, apenas as pessoas acima de 60 anos que tenham algum familiar com sintomas da doença estão sendo testadas na cidade. Entre os profissionais do município, somente um médico foi testado até o momento porque foi o único a apresentar sintomas. A prefeitura recebeu 40 testes rápidos do governo do Estado, comprou 25 e vai adquirir mais 50. Com isso, será ampliado o público.
– O pessoal gira muito (de uma cidade para outra) e tem muitos que ainda não entenderam que isso é problema para a população em geral – considera o secretário.
Algumas medidas adotadas
:: A prefeitura está monitorando a empresa de laticínios que tem cerca de 100 funcionários, sobre as medidas de contenção à propagação da doença.
:: Uso de máscaras, higienização, conscientização para que as pessoas fiquem em casa.
:: Além das medidas de isolamento domiciliar para casos suspeitos.
"É só testar que encontra", diz prefeito de Garibaldi
Garibaldi, uma das cidades polo de emprego na região, viu os casos confirmados da covid-19 se multiplicarem nas últimas três semanas e superar a marca de 100 na última segunda-feira, conforme dados da prefeitura. Segundo o prefeito Antônio Cetolin (MDB), um dos principais focos da doença no município foi o frigorífico Nicolini, que registrou boa parte dos registros da cidade (mais de 60). Por ser indústria alimentícia, não teve as atividades suspensas quando o comércio fechou.
Conforme o prefeito, o empreendimento cumpriu as orientações dadas pela prefeitura para o funcionamento, mas tem grande concentração de trabalhadores – são 1,5 mil – e entre eles muitos de outras regiões, como Metropolitana e Vale do Taquari, dois locais onde o vírus já estava mais disseminado. Além disso, o administrador atribui o crescimento do número de casos ao aumento na testagem. A prefeitura adquiriu 500 testes do tipo PCR, que faz análise de amostras das vias respiratórias aéreas e da boca de pacientes com sintomas. Eles serão analisados pela Feevale.
– Vai aumentar muito porque estamos fazendo testes rápidos. Os (municípios) que não sobem é porque não testam, porque é só testar que encontra – declarou o prefeito.
A prefeitura diz que está aplicando em média 20 testes rápidos por dia, entre pacientes que procuram o sistema de saúde e familiares de pessoas que tiveram resultado positivo para a doença. Situação semelhante vive Bento Gonçalves, que também ampliou significativamente a quantidade de exames.
– O número de casos não significa nada, o que importa é que isolamos essa pessoa (positivo para a covid-19) e evitamos o contágio – explica Cetolin.
Garibaldi já registra três mortes em decorrência do novo coronavírus: um homem de 43 anos que testou positivo, mas para o qual não foi encontrada uma justificativa já que ele não tinha comorbidades, conforme a prefeitura; um homem de 62 anos que tinha outros problemas de saúde; e um homem de 87 anos que tinha câncer e teria sido contaminado por uma neta. Para o prefeito, a combinação de dois fatores coloca Garibaldi no cenário elevado de casos – ter empresas com muitos funcionários e ter muitos deles vindo de outras regiões do Estado.
– Morte não tem explicação. Machuca, dói. Não é justificar, mas buscar possibilidades. O caminho que encontramos é testar. Garibaldi é uma cidade pequena, mas com muita gente de fora que vem trabalhar aqui – disse o prefeito alegando que a cidade adotou há muito tempo medidas de prevenção, como uso de máscaras.
Com exceção de farmácias, restaurantes e postos de combustíveis, o comércio de Garibaldi fecha às 19h. A ideia foi reduzir a quantidade de pessoas circulando pelas ruas à noite. Cetolin não descarta a possibilidade de adotar medidas mais restritivas conforme a evolução da doença e a capacidade hospitalar da cidade, como fez a vizinha Bento Gonçalves, que havia liberado e voltou a proibir eventos, por exemplo.
Sobre ter tantos casos e ainda não ter hospital de campanha, o prefeito diz que existem 16 quartos para serem usados como isolamento, caso preciso, no antigo colégio Santo Antônio, e diz que pode usar o ginásio municipal para leitos de enfermaria. Há ainda 10 leitos de UTI que aguardam credenciamento pelo Ministério da Saúde.
Cláudio Francisco dos Santos, 47 anos, se desloca todos os dias da cidade em que mora, Farroupilha, para trabalhar em uma empresa de móveis em Garibaldi. Ele também mencionou a questão dos locais que empregam muita gente de diversos locais.
– Venho de ônibus todos os dias, mas com ônibus quase vazio, com duas, três pessoas. Eu me cuido, mas se os outros não se cuidam é preocupante. A gente vê pessoas caminhando sem máscara por aí – contou Cláudio.
Municípios adquirem testes rápidos por consórcio
O Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento Sustentável da Serra Gaúcha (Cisga) fez uma licitação para adquirir cinco mil testes rápidos (IgG e IgM, que detectam se a pessoa já desenvolveu anticorpos para a covid-19 por meio de análise de amostra de sangue) para os 16 municípios que integram e estão ativos no grupo. O investimento foi de R$ 250 mil de recursos do caixa do consórcio. A maior parte (3.140) será distribuída às cidades pelas cotas que pagam de mensalidade ao Cisga e outra parte (1.860) será disponibilizada para as prefeituras que quiserem comprar.
Pela licitação, cada teste saiu no valor de R$ 79,50. O pregão foi publicado no dia 1º de abril e a empresa vencedora conhecida no dia 14. O problema é que a empresa não cumpriu o prazo inicial de entrega e, agora, o Cisga tenta ver se a segunda colocada tem condições de pronta entrega com mesmo valor para agilizar a distribuição.
Segundo o presidente do Cisga, Douglas Favero Pasuch, prefeito de Nova Roma do Sul, os prefeitos decidiram pela compra dos testes porque receberam poucos do governo estadual e acreditam na necessidade de testagem das pessoas para além dos profissionais da saúde e da segurança.
– A maioria dos municípios tem poucos testes, que são para a equipe de saúde e alguns casos mais graves. Os testes vão dar agilidade para os encaminhamentos necessários – declarou Pasuch.
Confira quantos testes cada município adquiriu por meio do Cisga:
:: Antônio Prado - 143
:: Bento Gonçalves - 954
:: Carlos Barbosa - 275
:: Coronel Pilar - 66
:: Cotiporã - 84
:: Fagundes Varela - 74
:: Garibaldi - 338
:: Guaporé - 212
:: Monte Belo do Sul - 75
:: Nova Bassano - 146
:: Nova Roma do Sul - 84
:: Paraí - 105
:: Pinto Bandeira - 79
:: Santa Tereza - 66
:: São Marcos - 193
:: Veranópolis - 246
:: Total - 3.140