Em um muro sem graça, coberto de tinta branca igualmente sem graça, dezenas de estudantes eternizaram com os toques irregulares de pincéis uma declaração de amor. Estão lá os nomes de pais, mães, irmãos, amigos, tios e primos que lhe são caros e, portanto, merecedores de uma celebração carregada de cores.
A ressignificação do amor e da paz em uma comunidade afetada pela violência e pelas vidas perdidas nasceu de duas turmas do 5º ano da Escola Municipal Nova Esperança, no loteamento Vila Amélia, em Caxias do Sul.
Inspirada pela canção francesa On écrit sur les murs (Nós escrevemos nos muros), a gurizada quis mostrar que um muro pode ter pichações desprovidas de qualquer sentido construtivo, pode ter marcas de tiros ou separar pessoas de acordo com suas crenças, raças e classes sociais, pode até proteger alguém de um ladrão, mas seguirá sendo apenas um muro de pedra e cimento. Agora, se paredes podem trazer mensagens para um amanhã melhor, que possam ser vistas num passar de olhos e instigar, nada mais justo do que exaltar quem amamos.
Os estudantes e professores da escola escolheram um dos muros do ginásio de esportes para gravar quem acalenta seus corações e apontar a urgência para darmos as mãos. Nomes como Hérica, Júlia, Gabriela, Milena, José, Eduardo, Maria ou simplesmente Mamãe foram pintados no dia de Ação de Graças, em meados de novembro. Pais dos alunos e moradores da comunidade também foram convidados a escrever. Ao final do ano letivo, na semana passada, todos perceberam que havia uma herança para os futuros alunos.
A ideia surgiu da professora Liciane Troian, 44 anos, dentro do projeto Semana da Cultura da Paz, em que todos os estudantes e professores da escola se mobilizam para projetos que culminam numa apresentação anual para a comunidade.
A atividade surgiu um ano após criminosos terem calados a tiros, num ato de vingança, o aluno da Nova Esperança Dionatan Albino da Rosa, 13. Mesmo sem ter relação com a criminalidade, Dionatan pagou com a vida por uma desavença envolvendo traficantes em setembro de 2007. A escola chorou. Na mesma época, a estudante Camila Almeida da Silva foi até a tribuna do projeto Vereador por um dia, da Câmara caxiense, e apresentou o embrião do que se tornaria a Semana da Paz. O grito contra a indiferença de Camila ganhou coro na Nova Esperança.
Desde então, cada turma precisa apresentar uma ação pela paz, que pode ir de uma peça de teatro a pedágios com mensagens. As turmas 52A e 52B, lideradas por Liciane e pela professora Merielen Camera, tentaram ir um pouco além. A provocação veio de Liciane, que também é estudante de francês e estava a procura de um tema para a apresentação. Numa das aulas do curso, viu um vídeo do grupo musical Kids United, formado por crianças nascidas entre 2004 e 2009, entoando On écrit sur les murs, uma ode à paz e à esperança. A idade dos alunos do 5º ano varia entre 10 e 13 anos.
— Percebi que tinha tudo a ver com que pensávamos. Mas a dúvida era como fazer para as crianças cantarem em francês? — lembra Liciane.
A solução foi simples. Liciane transcreveu a letra original para a pronúncia em francês, imprimiu folhas e entregou a cada aluno. Em seguida, pegou o violão, ajustou as notas e convocou os 44 alunos das duas turmas para ensaios. O desafio era cantar em outra língua e encontrar o tom certo da canção.
— A gente assistiu o vídeo, trabalhamos a letra para que todos soubessem o significado e começamos a ensaiar. No final, alguns já não liam mais a folha — conta a professora.
No dia de Ação de Graças, 28 de novembro, todas as turmas apresentaram seus projetos. A 52A e a 52B também estavam lá e os versos ecoaram no ginásio da Nova Esperança: on écrit sur les murs le nom de ceux qu'on aime (escrevemos nos muros o nome de quem amamos). Mas apenas a música não bastava, era preciso praticar de alguma forma o que a letra prega. Daí, surgiu a ideia de pincelar nomes no ginásio numa reflexão em um mundo que insiste em esquecer seus filhos.
Durante a Semana da Paz, os alunos foram separados em duplas munidas de pincel e tinta para escrever o nome de duas pessoas importantes em suas vidas. Os pequeninos em processo de alfabetização colocaram o próprio nome. Em cada Maria, Emily ou José grafado, é possível entender como uma tia ou um primo mais velho, por exemplo, ocupa o lugar do pai ausente. Ou quando o lar é inseguro e o acolhimento está no abraço de amigo da escola.
— A ideia discute a sublimação, precisamos sublimar muito para transformar. Lutamos ano após ano para as ideias mudarem e, às vezes, só conseguimos tocar através do afeto, da música, da cultura — resume Liciane.
"A vida vai além do seu bairro, do centro de sua cidade"
Como a violência te afeta? Como a paz te envolve? Essas questões são interpretadas de maneiras diferentes pelas crianças e pelos adolescentes da Nova Esperança _ são 600 estudantes matriculados. Gerações que só ouviram falar de Dionatan Albino da Rosa tentam dar o melhor de si para transmitir uma mensagem e, a partir desse aprendizado, seguir com um pensamento distinto daqueles que aceitam com passividade tanta intolerância. A resposta é clara. O comportamento mudou: delicadas violetas resistem nas janelas das salas, não há depredação, as turmas se dispõem a participar de eventos e a escola conquistou um lugar na comunidade.
— Dentro do possível, dos recursos que são poucos, se consegue bom aproveitamento para que as famílias sejam mais próximas. Toda essa evolução, não fosse a comunidade se empenhar, não conseguiríamos — elogia o vice-presidente do Círculo de Pais e Mestres da escola, João Adelino Dutra Flores.
Ao mesmo tempo, ao serem desafiados a cantar uma canção em outra língua e externar seus sentimentos, os estudantes saíram da própria caixa para ver a vida além dos muros. Ana Clara Germann, 10 anos, acreditava que seria difícil cantar em francês, mas ensaiou bastante porque acredita na informação da música. Escreveu no muro o nome do irmão José e da mãe Janete. Para ela, a violência veio traduzida num furto.
— Uma vez roubaram duas bicicletas lá de casa, com a gente em casa. A gente ouviu o barulho e fomos ver, tinham levado embora. A paz significa igualdade, o amor entre nós. Minha comunidade precisa da paz — diz a estudante.
Joice Edivania da Silva Amaral, 10, sentiu-se contagiada pelo desafio:
— Escrevei o nome da minha tia (Lilyan) e do meu pai (Márcio) porque amo muito eles. Foi emocionante participar, não imaginava que ia conseguir, que ia aprender.
— A gente aprendeu não só a música, mas as coisas sobre a França — conta Filipe Signori da Veiga, 13.
Embora a morte de Dionatan tenha sido a mais marcante, a escola perdeu outros alunos de forma triste.
— Perder um adolescente não é normal. Teve um ano em que as crianças estavam em volta de um corpo na área verde ao lado escola. Isso vai acontecendo e as pessoas acham que tudo bem. Então, tenta-se plantar um sonho, dizer para os jovens que a vida vai além do seu bairro, do centro de sua cidade — reflete Liciane.
Ainda resta espaço para pelo menos 100 nomes no muro, um privilégio reservado à comunidade da Nova Esperança.
LETRA TRADUZIDA
On écrit sur les murs (Escrevemos nos muros)
Escrevemos nos muros o nome de quem amamos
Mensagens para os dias que virão
Escrevemos nos muros com a tinta de nossas veias
Desenhamos aquilo que queremos dizer
Em tudo ao nosso redor
Existem sinais de esperanças nos olhares
Vamos registrar porque durante a noite
Tudo se apaga mesmo seu traço de esperança
Escrevemos nos muros a força de nossos sonhos
Nossas esperanças em forma de grafite
Escrevemos nos muros para que o amor se levante
Um bom dia para o mundo que dorme
Palavras somente gravadas
Para não esquecer, para tudo mudar
Misturemos amanhã num refrão
Nossas faces e nossas misturas