Ao anunciar que priorizará municípios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o Ministério da Saúde lança mais incertezas sobre os rumos do programa Mais Médicos. Pelo menos 13 municípios da Serra ainda não conseguiram repor as vagas abertas pela debandada de médicos cubanos no final do ano passado. A lista é engrossada por profissionais brasileiros ou de outras nacionalidades que migraram para outros programas ou deixaram a rede pública entre 2017 e 2018. Caxias do Sul e Bento Gonçalves, as cidades mais populosas da Serra, também correm o risco de ir para o fim da fila por não se encaixarem nos critérios que podem ser adotados pelo governo federal.
A reformulação do Mais Médicos será encaminhada para o congresso em abril, segundo o ministro da Saúde, Luís Henrique Mandetta. Ele afirmou à Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, na quarta-feira (27), que o principal objetivo é levar médicos para as regiões Norte, Nordeste e o Vale do Jequitinhonha, além de localidades isoladas do Centro-Oeste e distritos sanitários indígenas. Capitais, cidades com mais de 100 mil habitantes ou com o IDH alto não teriam preferência no repasse de subsídios federais. No caso da Serra, não há cidades com IDH baixo ou muito baixo, segundo estudos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o que lança dúvidas sobre como as demandas serão atendidas.
De 99 vagas autorizadas pelo governo federal em 41 cidades da Serra até o ano passado, 24 não haviam sido preenchidas até sexta-feira (29), o que inclui Caxias do Sul, Bento Gonçalves e Farroupilha. Não foi possível contatar outras cinco prefeituras inscritas no programa.
Apesar de os municípios serranos estarem numa posição mais confortável financeiramente se comparadas a regiões mais empobrecidas do país, muitos gestores da Saúde afirmam ter dificuldades para bancar altos salários via concurso ou encontram resistência para atrair profissionais com formação no Estado para suas regiões. Por isso, o Mais Médicos é visto como a salvação da atenção básica.
— Inicialmente, ficamos muito preocupados com a possibilidade de extinção, mas como foi dito que haverá uma reformulação, menos mal. Só que não sabemos que reformulação virá aí. Temos um grande problema para repor médicos e não é só aqui. Os médicos novos aprovados em concurso, ficam por um tempo e passam numa especialização e acabam indo embora, o que gera uma grande rotatividade — aponta o prefeito de Flores da Cunha, Lídio Scortegagna.
Até o fechamento desta edição, o Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre o Mais Médicos.
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O QUE É
O Mais Médicos foi lançado em 2013 pelo governo da então presidente Dilma Rousseff para atender regiões onde há escassez ou ausência de profissionais da Atenção Básica. Além disso, previa mais investimentos para construção, reforma e ampliação UBSs e formação de médicos. O governo federal paga o salário do profissional e os municípios arcam com as despesas de estadia e alimentação.
Retrocesso por um lado, equilíbrio de outro
Ao contrário dos boatos sobre o encerramento do Mais Médicos, o Conselho das Secretarias Municipal de Saúde do Rio Grande do Sul (Cosems) recebeu informações de que o programa continuará na ativa, mas com enxugamentos. Segundo o presidente do Cosems, Diego Spíndola, as cidades que perderam médicos não terão como repor, caso a regra cogitada em Brasília vire lei. Caxias do Sul, por exemplo, já teve 25 profissionais e contabiliza baixa de cinco médicos nos últimos tempos, reposição que não virá tão cedo. O secretário da Saúde de Caxias, Júlio César Freitas da Rosa, preferiu não dar opiniões sobre o programa porque o tema ainda está cercado de especulações. Spíndola, porém, é taxativo:
— O programa vai priorizar cidades mais distantes dos grandes centros e capitais, do interior, onde é difícil contratar médicos. O programa vai ser direcionado para regiões mais carentes, vai se manter nos municípios de pequeno porte. As cidades de nível 1, 2 e 3 não conseguem mais aderir.
O presidente do Cosems vê retrocesso, mas enxerga um futuro equilíbrio.
— Acho que o programa foi um dos maiores e melhores que o país já teve, com adesão das comunidades. Agora tem um retrocesso, mas por outro lado, se fará justiça, pois começa a obrigar os médicos a ir atender em locais de difícil acesso, de pequeno porte, longe das capitais. Era uma concorrência injusta. Os médicos optavam pelos centros maiores, em função do deslocamento, entre outras questões. E as cidades distantes ficam sem essa assistência.
A dúvida do Cosems é se haverá adesão dos médicos para as comunidades consideradas prioritárias pelo governo federal.
— E de que maneira o governo vai acolher os pedidos de municípios maiores? Limitar a quantidade de profissionais não seria bom. Nas grandes cidades, o povo lá na ponta vai ficar sem médico e os prefeitos estão com índices de folha de pagamento estourado, o que impede contratar mais médicos. Teremos oito mil médicos a menos no Brasil — projeta Spíndola.
Duas mil consultas em atraso
O problema enfrentado por São Francisco de Paula ilustra a importância do Mais Médicos e o impacto de possíveis enxugamentos. No final do ano passado, a saída dos médicos cubanos provocou uma grande sobrecarga nos serviços de saúde do município e no hospital. Não foi diferente em outras cidades: a falta de clínicos no final do ano passado foi suprida de forma provisória pelas secretarias de saúde. Em muitos casos, optou-se por atendimentos com horários reduzidos ou contratação de serviços privados.
Bárbara Küster, enfermeira da Secretaria da Saúde e ligada à rede de Atenção Básica de São Francisco de Paula, diz que metade da área rural perdeu a referência do Mais Médicos de novembro passado ao final de março, o que atrasou quase 2 mil consultas.
— A prefeitura não tinha recurso para contratação emergencial. Se tentou montar cronograma para amenizar o problema — conta Bárbara.
Hoje, o município voltou a ter três médicos pelo programa — uma das vagas foi preenchida na semana passada. Com isso, a situação deve normalizar.
— O programa é de extrema importância porque veio para garantir o acesso da população mais afastada a um médico. É difícil encontrar profissional para atender esses locais mais distantes. Da última vez, houve inscrições para atuar em nossa cidade, mas as pessoas não querem ir, mesmo que tenha transporte garantido — exemplifica a enfermeira.
Em Jaquirana, o dilema é saber se as mudanças beneficiarão o município ou vão mantê-lo afastado do programa. Conforme o secretário municipal de Saúde e Assistência Social, Rogério Almeida da Silva, a cidade nunca foi contemplada pelo governo federal.
— Não entendemos o porquê. Precisaríamos desse apoio na área da Atenção Básica. Os municípios estão passando por uma situação difícil. Em Jaquirana, o Estado nos deve dinheiro por falta de repasses _ reclama o secretário.
Precariedades e falta de plano de carreira
É possível sentir o apelo do Mais Médicos nas comunidades, pois o profissional do programa acaba tendo também uma função social ao estabelecer um relacionamento mais próximo e frequente com os pacientes e moradores. Em novembro, o médico Guilherme Abrão Salge veio de Uberaba (MG) e assumiu a ESF do bairro Fátima Baixo, em Caxias do Sul. Escolheu o sul do país pela qualidade de vida. Não pretende deixar o programa antes do fim do contrato de três anos e se tornou conhecido nas ruas da comunidade. Guilherme já decorou o nome de boa parte dos pacientes que atende no posto ou em visitas domiciliares. Na sexta-feira, percorreu moradias para analisar o quadro clínico de pacientes com dificuldades locomoção, caso de Élida Drews Martins, 75.
— Esse meu doutorzinho querido é muito amado — elogia a aposentada.
Guilherme diz que o programa deve ser reformulado, mas é necessário estabelecer um plano de carreira para os profissionais, possibilidade já acenada pelo Ministério da Saúde.
— Acontece sim de um médico fica um ou dois anos e ir embora — alerta o médico.
Flores da Cunha já teve quatro profissionais do programa em outros tempos e hoje tem dois na ativa. Um deles é Alan Augusto do Nascimento, que assumiu a Estratégia Saúde da Família (ESF) do bairro União em dezembro. A infraestrutura da cidade foi um dos fatores que lhe atraiu. Ele é natural do Paraná, mas já tinha residência em Caxias.
— Acredito que há escassez de profissionais devido à precariedade e à falta de condições de trabalho em algumas cidades — pondera Alan, que substituiu uma médica cubana.
O médico deve permanecer por um período no programa, pois planeja uma especialização para 2020, o que provavelmente abrirá uma nova lacuna em Flores da Cunha.
O QUE VEM POR AÍ
Confira mudanças previstas no Mais Médicos com base em informações repassadas pelo Ministério da Saúde em audiências com parlamentares e entrevistas na imprensa:
:: O Mais Médicos será reformulado e o programa pode mudar de nome.
:: O programa dará preferência para municípios pobres, com baixo IDH e com dificuldade crônica de acesso a médicos.
:: A nova versão deve instituir um plano de carreira para os médicos, estabelecer rodízio de profissionais em localidades mais distantes, como forma de deixar o programa mais atraente.
:: A remuneração dos médicos também pode ser diferente de acordo com a região de atuação.