Há pelo menos oito meses, a comunidade da Escola Estadual de Ensino Médio Antônio Avelino Boff, no distrito de Fazenda Souza, em Caxias do Sul, vive a expectativa de uma definição sobre qual será o destino da equipe diretiva da instituição. A diretora, Aline Tatiana Turcatto Seidler, a vice-diretora, Rosecler Inês da Rosa, a outra vice, Simone Maria Meneguini, a coordenadora pedagógica, Susi Mara Padilha, e a secretária, Inelva Andrighetti, são alvo de uma sindicância da Secretaria de Educação do Estado (Seduc). O procedimento já cumpriu a maioria das etapas e entrou na fase final de defesa. O resultado deve ser conhecido até o início de setembro.
Depois de um vaivém, que começou com a primeira denúncia, em novembro do ano passado, e passou pelo afastamento das cinco servidoras, todas estão de volta à escola em suas funções originais, aguardando a decisão.
A história envolvendo a direção da Antônio Avelino Boff se iniciou com a denúncia contra a diretora por parte das outras quatro servidores citadas. Entre os fatos denunciados está o de má gestão de recursos públicos. Segundo as servidoras, a diretora teria utilizado a verba da merenda escolar para fazer compras de produtos em estabelecimento comercial local, sem a realização de licitação.
Uma simulação de licitação teria sido feita, posteriormente, para justificar as compras. Os gastos também teriam sido maiores do que a disponibilidade de recursos, o que teria endividado a escola em cerca de R$ 4 mil.
Os problemas teriam ocorrido entre 2016 e 2017 e teriam sido encobertos nas prestações de conta apresentadas à 4ª Coordenadoria Regional de Educação (4ª CRE) para que a situação não fosse percebida. Em uma situação, inclusive, teria havido ajuda de uma das servidoras que, depois, informou as práticas da diretora. Outra suspeita é que o bar que operava dentro do prédio teria funcionado por cerca de sete meses sem ter passado por processo licitatório.
A escola também não teria pago um prestador de serviços de internet no valor de R$ 4,6 mil, uma loja onde teriam sido comprados materiais escolares na quantia de R$ 3 mil e a compra de um bebedouro que gerou protesto em cartório. A dívida total teria ultrapassado os R$ 12 mil, conforme as denunciantes. Na tentativa de quitar os débitos, a diretoria teria pedido um empréstimo pessoal a uma professora, repassando o dinheiro (R$ 2,5 mil) à escola. O pagamento desse empréstimo seria feito mensalmente com os recursos do caixa da instituição.
Diante do endividamento progressivo da escola, as quatro servidoras resolveram denunciar as práticas da diretora. Elas levaram a situação ao conhecimento da 4ª CRE, da Secretaria de Educação, ao canal de Ouvidoria da Casa Civil e ao Ministério Público. Há relatos de testemunhas na denúncia envolvendo, ainda, cobranças de taxas aos alunos na matrícula e para que tivessem acesso ao wi-fi na escola.
Segundo a coordenadora da 4ª CRE, Janice Moraes, o caso foi encaminhado pelo órgão à Secretaria Estadual de Educação, que abriu sindicância para apurar as denúncias em 22 de janeiro deste ano. O ato foi tornado público no Diário Oficial do Estado. A Seduc também determinou o afastamento das cinco servidoras – denunciada e denunciantes – por meio de portaria, publicada em 24 de janeiro, com os nomes delas. O afastamento tinha prazo de 60 dias úteis, tempo em que transcorreu a apuração, com coleta de 20 depoimentos da comunidade escolar.
De fora, normal. De dentro, tensão
Enquanto transcorria o afastamento da equipe diretiva, a 4ª CRE indicou uma diretora substituta para a Antônio Avelino Boff e ficou encarregada de fazer as prestações de contas do estabelecimento de ensino. Três dias antes do fim do prazo do afastamento – 20 de abril –, as servidoras voltaram a ocupar os cargos na escola por meio de liminar da Justiça. A diretora, porém, apresentou um atestado médico e só retornou à instituição no último dia 18 de julho.
No começo da tarde da última quarta-feira, quando a reportagem esteve na escola, o clima parecia normal: corredores vazios e estudantes em sala de aula. Mas, bastava pronunciar a palavra sindicância para perceber nos rostos dos servidores a expressão de tensão e até um certo desconforto. A escola tem cerca de 400 alunos cursando o Ensino Médio em três turnos.
No mural, no hall de entrada, algumas notas e comprovantes de compras afixados demonstravam a informalidade com que as finanças são tratadas. Uma delas referia o valor de R$ 100 recebido do Círculo de Pais e Mestres (CPM) para aquisição de materiais de consumo como papel higiênico, sabão e detergente. Outras duas referiam que a diretora havia emprestado dinheiro (não especificado se de recurso pessoal ou de verba da escola) para a compra de lâmpadas, no valor de R$ 198, e de alfinetes, na quantia de pouco mais de R$ 8, ambas com ressarcimento por parte do CPM.
À reportagem, a diretora Aline Tatiana Turcatto Seidler disse que não podia dar informações sobre as denúncias porque a sindicância corre em sigilo. As denunciantes falaram com o Pioneiro em 13 de abril deste ano.
– Queremos deixar claro para os pais e para os alunos. Nosso erro foi de, quando descobrimos, não ter contado tudo para os professores, alunos e pais. Fomos conversar com a 4ª CRE para pedir ajuda deles – disse, à época, a secretária Inelva Andrighetti.
O QUE DIZEM:
:: A diretora Aline Seidler não falou sobre as denúncias, mas no processo de sindicância que o Pioneiro teve acesso consta que ela declarou ter herdado dívidas de gestões anteriores. No documento, ela informou ainda que havia pedido a um professor que fizesse a "licitação para que o bar funcionasse de acordo com as normas", mas que ele não teria encaminhado o processo à 4ª CRE. Que "a escola tem dívidas na parte de alimentação, pois, por desconhecimento, não colocou na licitação". Que "tem dívidas de lâmpadas, material elétrico e de material de limpeza"; que "emitiu um cheque sem fundo por engano da gerente do banco" que lhe deu saldo errado e admitiu ter pedido empréstimo a uma professora para pagar as dívidas da escola. Falou ainda que "foi feito um levantamento com os alunos para ver se eles poderiam e queriam contribuir com R$ 10 para a instalação de wi-fi; que, em princípio, tinha acesso a quem colaborou e que não impedia quem não tinha colaborado de ter acesso ao login". A diretora afirmou ainda que não é cobrada taxa de inscrição nem matrícula, sendo "que os alunos contribuem com um valor que é estipulado por eles". Atualmente (2018), o valor seria de R$ 90. Aline afirmou ainda "que teve dificuldades, que invadiu rubricas, mas fez todos os depósitos e devolveu todos os valores". O advogado que representa a diretora, Jair Wolfram, disse que não se manifestará, neste momento, sobre o assunto.
:: Integrantes de diferentes setores da 4ª CRE dizem no processo "que nos relatos feitos havia indícios de irregularidades, problemas no financeiro e pedagógico" e "que as denúncias, em tese, eram procedentes"; que "tinha um bar na escola sem licitação"; que "também foi constatada irregularidades no livro ponto, pois alguns professores deixavam de assinar o livro ponto por mais de 15, 20 dias". Há relatos ainda de que "as prestações de contas da escola sempre foram desorganizadas", e de que "a diretora invadia rubrica, gastava mais do que tinha".
:: Diferentes professores da escola relataram que "ficaram sem telefone e internet, pois as contas estavam atrasadas"; "a cobrança aos alunos de R$ 90 (no momento da matrícula) começou no ano de 2017"; e que "o calendário escolar não foi cumprido na íntegra, nem pelo aluno, nem pelo professor". "A senha (do wi-fi) era liberada para quem pagasse".
:: O dono do mercado no qual teriam sido feitas compras para a merenda confirmou à reportagem que a Escola Antônio Avelino Boff teve uma dívida e disse que o montante, que seria inferior a R$ 4 mil, foi pago há cerca de dois meses. Disse ainda que o fornecimento dos itens no período indicado foi feito por meio de licitação, mas que não guarda mais os comprovantes ou documentos referentes aos processos. O estabelecimento fica no bairro Ana Rech, distante cerca de oito quilômetros da sede da escola.
:: O dono da empresa que instalou o cabeamento para internet disse à reportagem que ainda não recebeu a maior parte do serviço prestado em julho de 2017, no valor total de R$ 4.675. Recibos demonstram que foram pagos R$ 500, em setembro e, depois, R$ 1 mil, em dezembro, restando R$ 3.175 da dívida.
:: Pioneiro não conseguiu localizar os demais prestadores de serviços citados pelas denunciantes.
Como é
:: Eleição para diretor: o processo normal para se nomear um diretor de escola é o eleitoral. Porém, a indicação para o cargo ocorre quando não há nenhuma chapa inscrita na eleição. Nesse caso, quem indica é a coordenadoria. Foi o que ocorreu na Antônio Avelino Boff, segundo a 4ª CRE.
:: Verba da merenda*: recurso repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), vinculado ao Ministério da Educação, diretamente para a escola e que vai para uma conta movimentada pelo diretor. No caso da Antônio Avelino Boff, o valor é de R$ 2.592 mensais. Além desse montante, a escola recebe um complemento do governo do Estado de R$ 864 mensais. Para ser gasto, via de regra, é preciso fazer uma licitação, a não ser que se enquadre nos critérios de dispensa do processo.
:: Verba da autonomia escolar*: recurso repassado pelo governo estadual para a escola. No caso da Antônio Avelino Boff, são R$ 1.624,00 para a manutenção e R$ 696 para materiais permanentes. Da mesma forma, vai para uma conta gerida pelo diretor. Para ser gasto, é preciso fazer levantamento com três orçamentos. Esse recurso pode ser usado, por exemplo, para pagamento de internet e telefone, entre outros.
:: A Avelino recebeu, ainda, em junho deste ano, R$ 150 mil do Bird para obras na escola. Esse recurso foi para conta específica gerida pela diretora, mas não pode utilizado sem licitação.
:: A escola recebe outras verbas federais que vão para uma conta em nome do Círculo de Pais e Mestres (CPM), mas a prestação de contas fica na escola. O CPM não quis se manifestar antes da conclusão da sindicância.
*O valor varia de um estabelecimento para outro conforme o número de alunos.
Promotoria e comunidade acompanham o caso
Em função de a sindicância ainda estar em andamento, a 4ª Coordenadoria Regional de Educação (4ª CRE), a Secretaria de Educação do Estado (Seduc) e o Ministério Público não comentam o assunto.
A promotora regional de Educação Simone Martini informou que foi instaurado, em 25 de maio deste ano, um procedimento administrativo para acompanhar o caso que, segundo ela, envolve "situações que interferem no bom funcionamento e na qualidade da educação dispensada ao corpo discente."
– Foram requisitadas à 4ª CRE e Seduc a adoção das providências cabíveis em relação aos fatos trazidos a conhecimento do Ministério Público, que estavam impactando na qualidade do ensino prestado no educandário e ao ambiente escolar – disse a promotora.
A repercussão dos fatos ocorridos na escola, porém, ultrapassaram os muros. A abertura da instituição, apesar de recente (2009) é resultado de uma reivindicação antiga da comunidade, que também espera uma solução para os problemas e a regularização das atividades.
– Sou morador, nasci e me criei em Fazenda Souza, e é uma vergonha o que está acontecendo com a nossa escola. Desde que me conheço por gente, a população pede por uma escola de 2º grau (Ensino Médio) e agora, que a gente tem uma e era só manter, fazem isso – critica Fabiano Bolson, dono da loja que instalou o cabeamento de internet no prédio.
Quando questionada se alguma das servidoras pode ser responsabilizada, a promotora Simone Martini explicou que, nesse caso, a competência da Secretaria de Educação do Estado é quanto à aplicação das sanções administrativas, se constatadas as irregularidades. À promotoria compete fiscalizar as ações "para que o educandário tenha sua situação regularizada e os alunos tenham seu direito à educação de qualidade assegurados".
– Eventual situação que configure improbidade administrativa de servidor público será encaminhada ao conhecimento das promotorias de Justiça com atuação na defesa do patrimônio público – explicou Simone.
A Secretaria de Educação disse que "neste momento, para não prejudicar o andamento do processo", a comissão que trata do caso não está autorizada a se manifestar sobre a sindicância.