Em dias de enxurrada, o Arroio Pinhal se transforma num furioso corredor de água barrenta, cenário conhecido há décadas pelos moradores de Galópolis. É quando todos esperam pelo transbordamento e o consequente alagamento de ruas e casas. Nos últimos tempos, porém, a comunidade vem notando uma movimentação diferente, mais forte e menos natural, que estaria corroendo as bases do leito do Pinhal com uma rapidez até então desconhecida. Os mais pessimistas enxergam, num futuro próximo, construções ribeirinhas sendo engolidas pelo arroio.
A previsão pode soar exagerada e não há avaliações geológicas sobre o atual estado do Arroio Pinhal. Mas o crescimento de Caxias e as intervenções urbanísticas no próprio bairro têm interferido na capacidade do canal de absorver a água que desce da área central e das zonas Sul e Leste.
A estimativa é de que o leito conduz 50% de todo o esgoto pluvial da zona urbana da cidade em direção ao Rio Caí. Não seria um grande problema, caso parte de Galópolis não tivesse sido erguida às margens desse curso de água. Os moradores perceberam que os muros de contenção, construídos e reforçados ao longo dos últimos anos, têm sido insuficientes para segurar uma fúria provocada mais por fatores humanos do que pela natureza.
A nascente do Pinhal é perto do Presídio Regional de Caxias, no Sagrada Família, num terreno situado a 830 metros de altura em relação ao mar. De lá, o curso de água percorre 10 quilômetros por diversos bairros até chegar em Galópolis, quando a altitude já é de 470 metros — ele encontra a bacia do Rio Caí em Vila Cristina. A diferença de 360 metros é o bastante, por si só, para impulsionar a velocidade da água. Quando chove, a força aumenta. Só que agora, o volume de água é muito maior, pois o Pinhal absorve a precipitação que antes era diluída entre as frestas dos antigos calçamentos de basalto e agora rola sobre ruas asfaltadas da área central. A isso, soma-se o esgoto pluvial de loteamentos irregulares, problema no qual o município não tem controle. Quando a onda do Pinhal bate em Galópolis num dia de temporal, trazendo toda essa água extra, pedras e lixo, é movimento com poder para afetar a base das margens, enfraquecer muros, afundar calçadas e pátios, sinais que atemorizam os moradores.
Segundo a Associação de Moradores de Galópolis (Amog), são cerca de 500 moradias nas margens do Pinhal. No caminho da água, estão imóveis históricos como parte da antiga Vila Operária. Além do prejuízo financeiro, a comunidade teme o desaparecimento de parte da história arquitetônica de Caxias, segundo a presidente da Amog, Maria Patrício Finco.
Uma amostra da ameaça do Pinhal é obra de recuperação de uma calçada que desmoronou com uma barreira de contenção em 2015, ao lado de um posto de combustíveis, na BR-116. A reconstrução já sinais de que está cedendo novamente.
— Sempre foi assim, mas o crescimento de Caxias faz com que o Pinhal forme uma onda assustadora em dias de chuva forte e traz tudo para nós. Está diferente do que era há 20 anos — diz Rita Furlan, 60.
Prefeitura escavou leito há poucos meses
Para parte da comunidade de Galópolis, a solução seria a construção de uma lagoa artificial antes do trecho urbano, num ponto mais elevado de uma área verde. O piscinão, parecido com uma estrutura erguida no bairro São José para conter alagamentos há alguns anos, reteria a água da chuva e o excesso do arroio, só liberando o volume armazenado aos poucos. Em tese, evitaria o transbordamento. A Secretaria de Obras e Serviços Públicos, porém, não vê a lagoa como solução e considera que somente uma barragem do porte do Sistema Marrecas teria capacidade para frear o Pinhal.
Como não há dinheiro público para uma obra desse tamanho, a ação mais imediata é escavar o leito até onde for possível. Os moradores enxergam esse tipo de trabalho, adotado em diversões gestões da prefeitura, como paliativo. Já foram realizadas muitas escavações para alargar ou aprofundar o arroio em décadas e o transbordamento não cessa.
— No caso de uma barragem, o risco de um acidente é maior. Imagine se uma represa rompe? Fizemos o desassoreamento do início do trecho urbano de Galópolis até a cachoeira (do Véu da Noiva). Em algumas partes, escavamos até um metro de profundidade, o que deve segurar a água. No cenário atual, com chuva moderada, não tem alagado, mas sabemos que com a chuva exagerada, a tendência é transbordar o arroio, pois ali absorve boa parte da água de Caxias — pondera o titular da secretaria de Obras, Leandro Pavan.
O geólogo Nerio Susin avalia que desmoronamento de moradias na beira de um rio sempre pode ocorrer. No caso de Galópolis, o risco é maior se as fundações de prédios e casas estiverem sobre o solo e não sobre rochas.
— Quando há ondulações fortes na corrente, é natural que vá colapsando as margens. Barreiras de contenção canalizando o arroio conseguiriam deter o avanço da água — diz Susin.
"Uma vez precisava chover a semana toda para transbordar"
O último transbordamento do Pinhal ocorreu em outubro do ano passado, mas os moradores sabem que é uma questão de tempo para novos transtornos.
Quando os primeiros pingos de chuva caem no centro de Caxias, o telefone da empresária Bruna Henz 39, toca em Galópolis. Geralmente é o pai alertando para um possível aguaceiro. A primeira atitude de Bruna é tirar os carros da garagem, levá-los para a BR-116 e aguardar pelo pior. Bruna diz já ter refeito o muro da moradia duas vezes.
— Quando a chuva começa no Centro, a gente se prepara, porque a água vem mesmo. Já tive muito prejuízo com alagamentos. Antigamente, o rio era mais estreito, foi alargado e ainda alaga — conta a empresária.
Perto dali, Edemar Rigon, 66, usou oito metros cúbicos de cimento (o equivalente a 160 sacos de 50 quilos) para forjar uma base no leito do arroio, com apoio de outros três vizinhos. Rigon é dono de uma das moradias da antiga Vila Operária.
— Fizemos isso há uns quatro meses porque a água está corroendo a terra e o meu muro começou a ceder. A ideia agora é erguer um paredão para conter o arroio quando sobe.
A família de Miriam Tomassoni, 57, perdeu um muro e uma pequena casa de madeira. Onde antes havia as benfeitorias, cresce o mato. O casarão de madeira da família Stragliotto, datado de 1914, também está na rota da água. O herdeiro de um dos símbolos arquitetônicos da imigração italiana, Geraldo Stragliotto, 65, vem construindo há anos pilares nos fundos da moradia e da outra margem do rio. A obra mais recente, de 2016, é uma tentativa de segurar duas árvores. O arroio já invadiu o porão da casa no último temporal. Se um novo alagamento atingir as velhas tábuas da parte superior, ele prevê estragos sem possibilidade de recuperação.
— Uma vez precisava chover a semana toda para transbordar. Agora é muito rápido. O arroio está no limite, não tem mais para onde cavoucar. Até a beleza do rio está se perdendo. Se não fizerem algo, muita coisa vai desaparecer — alerta Stragliotto.
Além de afetar Galópolis, o Pinhal também costuma transbordar na região do Distrito de Vila Cristina. Segundo a Secretaria de Obras, são comuns os alagamentos em dias de enxurrada, principalmente nos terrenos no entorno da subprefeitura, nas imediações do antigo desvio do pedágio.