De um lado, famílias enlutadas com a morte precoce de um filho. Do outro, aquelas que lutam contra o tempo em busca de um órgão capaz de salvar a vida de um familiar. Histórias distintas que, quando se cruzam, abrem caminho para a esperança. Uma decisão nada simples e que envolve uma série de sentimentos. Independentemente da crença de cada família, há uma certeza por trás daquela difícil autorização: a oportunidade de uma vida continuar. Com o objetivo de esclarecer dúvidas e conscientizar a população sobre a necessidade de ajudar quem está na fila de transplantes que entidades de Caxias do Sul oferecem, nesta quarta-feira, Dia Nacional de Doação de Órgãos, atividades em diversos pontos da cidade (veja quadro abaixo).
Quem já passou por uma encruzilhada dessa, não se arrepende.
— Eu falo com muito orgulho que meu filho salvou sete vidas. No meio de tanta dor que ainda sinto, da saudade de tê-lo por perto, é isso que me dá forças para seguir em frente — revela Naira Raffainer Cousandier, 53 anos, moradora de Bento Gonçalves.
Em fevereiro de 2016, o filho dela, Lucas Raffainer Cousandier, 19, morreu ao ser assassinado por policiais em Caxias do Sul. Na época, de acordo com a denuncia do Ministério Público (MP), além de matar o jovem por motivo fútil, eles cometeram fraude processual, denunciação caluniosa, abuso de autoridade e porte ilegal de arma. Atingido na cabeça, Lucas foi encaminhado ao Hospital Pompéia, onde teve a morte cerebral constatada dois dias depois.
— Na hora que o médico nos chamou, foi uma sensação indescritível. Eu vi meu mundo desabar em questão de segundos. Só que quando nos falaram sobre doar os órgãos, eu senti como se tivesse a chance de fazer a vida do meu filho continuar. E foi por isso que aceitamos. Ele doou os rins, o coração, o fígado e as córneas — conta a mãe.
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Além de amenizar o sofrimento de sete pessoas, a decisão da família Cousandier ajudou a diminuir a enorme lista de espera por um órgão no Rio Grande do Sul. De acordo com a Central de Transplantes do Estado, há 1.161 pessoas aguardando por um transplante. Dessas, 876 aguardam por rim, 153 esperam por fígado, 85 por pulmão, 17 por coração, 12 por córnea, cinco por pâncreas e 13 por rins e pâncreas (transplante duplo).
Em Caxias do Sul, os hospitais Pompéia e Geral são autorizados a captar órgãos de pessoas que tiveram a morte encefálica confirmada. Neste ano, depois de períodos com negativas de famílias, houve um aumento significativo nas autorizações: somente no Pompéia, das 39 notificações de morte encefálica, 22 tiveram a captação de órgãos liberada pelos familiares. Em todo 2016, foram 35 confirmações e 19 autorizações de transplantes.
— Isso mostra que tem dado certo todo o trabalho de conscientização e de esclarecimento sobre os transplantes. A cada ano, temos percebido um aumento, apesar de ser algo bem específico de cada família — afirma o enfermeiro Anderson Nunes Lopes, da Organização de Procura por Órgãos 3 (OPO3) do Pompéia.
O processo de autorização da doação de órgãos é, teoricamente, tranquilo, já que não há necessidade de o doador formalizar a vontade em um documento em vida. Para isso, basta uma conversa com familiares. Foi esse diálogo entre pais e filhas que fez a família de Rafaela Maino Ferreira, 16, autorizar a doação. A garota morreu após ser atropelada por um motociclista na madrugada do dia 14 de janeiro. Foram doados os rins, as córneas e o fígado, ajudando cinco pessoas.
— Na semana em que a Rafa foi atropelada, por coincidência, nós tínhamos conversado sobre o assunto. Então, na hora em que a morte encefálica foi confirmada, a gente já falou que queria fazer a doação. Lembro que a equipe médica até ficou surpresa, porque não é uma atitude comum. Ter realizado essa vontade, certamente nos acalmou, apesar de todo o sofrimento da partida dela — diz a irmã, Camila Maino Ferreira, 22.
Segundo o presidente da Associação dos Pacientes Renais Crônicos de Caxias do Sul (Rim Viver), a média de idade dos doadores de rins é de 20 a 35 anos, justamente pela inserção do assunto entre os jovens. A Rim Viver, inclusive, faz palestras em escolas para reforçar a importância da conversa entre pais e filhos.
— Nós percebemos que ao longo dos anos tem tido um aumento gradual nas doações, muito devido às campanhas. Mas o passo mais importante e que é sem dúvida alguma o principal é a pessoa manifestar aos familiares a vontade de ter os órgãos doados. Desta forma, será possível reduzir a fila espera — explica Evandro Pinho Neckel.
PROGRAME-SE
Hospital Pompéia
:: Nesta quarta-feira, das 9h às 16h, haverá uma ação social em frente ao hospital, com verificação de pressão, teste glicêmico e distribuição de panfletos sobre doação de órgãos.
:: Na sexta-feira, entre 9h e 16h, profissionais do hospital estarão em frente ao Shopping Pratavieira distribuindo material informativo sobre doação de órgãos, além de esclarecerem dúvidas da população.
:: Sábado, será realizada uma missa com familiares de doadores de órgãos na capela do hospital.
Hospital Geral
:: Nesta quarta-feira, a partir das 9h30min, profissionais de saúde do hospital participam de uma ação social na recepção da instituição. Haverá verificação de pressão e teste glicêmico.
Associação dos Pacientes Renais Crônicos de Caxias do Sul (Rim Viver)
:: A partir das 9h30min desta quarta-feira, em frente a sede da Rim Viver, na Avenida Rio Branco, membros da associação, em parceria com a Faculdade Fátima, fazem a entrega de panfletos com informações sobre doação de órgãos, além de abordagens à população.
SAIBA MAIS
Os órgãos/tecidos que podem ser retirados a partir da morte cerebral são:
:: rins
:: fígado
:: coração
:: pâncreas
:: pulmão
:: intestino
:: córneas
:: pele
:: osso
:: músculos
:: tendões
:: vasos
TIRA DÚVIDAS
:: Como ser doador?
É desnecessário deixar a vontade por escrito, basta avisar a família. A doação só acontece após a autorização familiar documentada.
:: Doador falecido
É o paciente internado em UTI com morte encefálica, em geral depois de traumatismo craniano ou acidente vascular cerebral ( AVC). A retirada dos órgãos é realizada no centro cirúrgico do hospital e segue toda a rotina das grandes cirurgias. A retirada de córnea pode ser até seis horas após a parada cardíaca.
:: Para quem vão os órgãos?
Para os primeiros pacientes em espera na lista única da central de transplantes do Estado.
:: Doador vivo
É qualquer pessoa saudável que concorde com a doação de rim ou medula óssea e, ocasionalmente, com o transplante de parte do fígado ou do pulmão para um familiar. Para doadores não parentes há necessidade de autorização judicial.