Há poucos chavões domésticos que vestem tão bem quanto este:
- João só faltava falar!
João era (era?) meu cão.
Nossa vida em comum durou 15 anos, cinco deles vividos por ele em absoluta cegueira.
João não enxergava, mas era um independente. Ouvia, sentia, farejava e, claro, quase falava - ele estava chegando lá não fosse a rápida e fulminante crise nos rins (mais uma crise) que o acometeu no fim de semana.
João se foi ontem, talvez sem entender nada, mas aposto que alheio aos acontecimentos, em transe, fortemente medicado e acarinhado.
Peço perdão aos 17 leitores da coluna por submetê-los a assunto tão intimo, particular, absolutamente desinteressante para o universo que orbita em torno da minha casa. Mas, juro, perder um cão é doloroso, e tomo a liberdade e assumo as consequências de informá-los a respeito do estado de espírito que domina meu lar.
Antes que alguém interrompa, reconheço: a dor de perder um cão é muito diferente da dor de perder um amigo, um conhecido, um vizinho, um parente, qualquer alguém, mas é dor. Raras vezes é aconselhável comparar coisas diferentes. Quando se trata de luto, qualquer luto, os comparativos deveriam ser sepultados de véspera.
João se foi sem aprender a falar, mas deixou dito, claramente, que as parcerias são vitais como respirar.
Naturalmente a dor da perda passará logo, pois intensidades são comparáveis, e jamais a morte de um cão se igualará à morte de um amigo, de um conhecido, de um vizinho, de um parente.
Se João falasse, acho que teria agradecido pela parceria, pela confiança, pela liberdade, pela lealdade, pelas frias em que o meti.
Como cães ainda não falam, faço-me porta-voz do meu companheiro e digo, melodramático de caso pensado:
- Valeu!
Bola pra frente, desculpem o desabafo e obrigado pela compreensão.
Me restam dois cães que ainda engatinham nas artes da falação.
Eles estão claramente confusos com os acontecimentos. O súbito sumiço de João provocou um vácuo, uns olhares diferentes, um farejar inédito pela casa, dois rabos recolhidos.
Agora que o Alfa se foi, Totó e Bobi terão de redobrar o empenho para um dia serem lembrados como cães que só faltaram falar.
Opinião
Gilberto Blume: meu cão se foi sem aprender a falar, mas deixou dito que as parcerias são vitais como respirar
Me restam dois cães que ainda engatinham nas artes da falação
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