Gilberto Blume: Vá tranquilo, Seu Ronaldo

Quando há pessoas queridas muito doentes experimentamos um estado meio de incredulidade, meio de medo, meio de saudade antecipada, meio de espanto, meio de.

Sem querer julgar se essa experiência é boa ou ruim, dá para concluir que a miscelânea de sensações incompletas traduz um pouco os valores ocidentais dessa civilização que jamais conseguiu assimilar o fim, a partida, a viagem sem volta.

A partida lenta deveria servir como preparativo, como aperitivo, como lenitivo ao inevitável luto que vem vindo.

Não nos iludamos, porém.

Jamais estaremos prontos, fortes e dignos para o adeus.

Resta-nos curtir a enorme e necessária dor proporcionada pelo oco que fica.

Meus pais partiram de súbito, não acordaram. Por muito tempo não os perdoei pela indelicadeza, pelo choque de nos fazer encarar a morte ao amanhecer.

Não tivemos a oportunidade de sofrer por antecipação, de sentir saudade em vida, de ensaiar posturas adequadas à solene ocasião.

Tanto para quem vai como para quem fica, a fulminância da morte súbita queima algumas etapas importantes desse processo chamado vida, mas o passar do tempo geralmente trata de fazer emergir algumas vantagens do fator surpresa que antes não tínhamos condições de perceber.

Assim também é com a partida claudicante, sofrida, curtida à exaustão em todas as etapas.

Mais lá adiante seremos confrontados com aspectos jamais percebidos durante a pré-partida.

Então teremos ainda mais certeza de que tudo terá valido a pena.

Seu Ronaldo partiu ontem.

Nas últimas madrugadas, seus filhos lançavam lençóis pelo quarto do hospital e alcançavam os peixes capturados ao pai, expirando na cama mas rindo a pregas soltas com a fartura da pescaria imaginária proporcionada pelos seus.

Seu Ronaldo ainda tinha energia para devolver os peixes maiores, preferindo os pequeninos, bem fritos e crocantes.

Obrigado por tudo, Seu Ronaldo.

Agradeço por ter existido para mim, para nós.

Vá tranquilo, os peixes que o senhor legou vão aprimorar nossa caminhada.