Quem imagina que a vida de um intelectual seja reduzida à clausura, surpreende-se ao revisar o universo do escritor Mansueto Bernardi (20/3/1888-9/9/1966), cuja morte acaba de completar 50 anos. Sintonizado e motivado com a efervescência da realidade, Bernardi foi um expressivo articulador social. Disposto, interagiu no ensino, no funcionalismo público, na administração, na literatura e na política, demonstrando coerência na construção de um mundo concreto, alicerçado pela moral e princípios edificantes, sendo protagonista de seu tempo.
Nascido na Itália, em 20 de março de 1888, imigrou para o Brasil com os pais, Maria Dal Pai e Giovani Bernardi, quando tinha apenas três meses. Instalado na região colonial italiana, valorizou a convivência com o bucolismo rural, sentimentos influentes em seus poemas.
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De espírito inquieto, afastou-se do cotidiano colonial para fazer concurso para Oficial do Tesouro em 1909. Cinco anos depois, ingressou na Secretaria da Fazenda. Casou em 1915, com Idalina Mariante da Costa, em Porto Alegre. Foi nomeado intendente de São Leopoldo em 1919. Nas eleições de 1920, o italiano teve a proeza de conquistar a Intendência de São Leopoldo, município caracterizado pela comunidade germânica. Sua gestão evidenciou-se com a pavimentação no trecho até Porto Alegre, construção de usina hidrelétrica e o esforço legal em defender a territorialidade dos terrenos à margem do Rio dos Sinos, contestando os tributos exigidos pelo Tesouro Nacional.
Ao deixar a vida pública, foi convidado por José Bertasso para administrar a emblemática Livraria O Globo, em Porto Alegre. Ali, Bernardi estabeleceu fortes amizades com a elite intelectual gaúcha e abriu as portas para promissores escritores, entre os quais Erico Verissimo. Concebeu, também, a Revista do Globo, veículo que difundiu a cultura gaúcha.
Identidade mantida
Morando em Porto Alegre, Mansueto Bernardi não abandonou suas raízes italianas. Por ocasião do cinquentenário da imigração italiana no Rio Grande do Sul, em 1925, integrou o grupo de monografistas de um documentário denominado Cinquantenario della colonizzazione italiana nel Rio Grande del Sud, impresso em idioma italiano. Este trabalho envolveu a participação do jovem e futuro bispo José Barea e de Celeste Gobbato, então intendente de Caxias do Sul, bem como representantes da comunidade consular italiana. Nos festejos na Capital, Bernardi evidenciou-se como orador oficial. Posteriormente, em 1950, na obra Álbum Comemorativo do 75º da Colonização Italiana, Mansueto dedicou três poesias: A Um Colono, Cemitério dos Imigrantes e Caminhos Coloniais.
Na atmosfera intelectual da livraria, Bernardi relacionou-se com políticos expressivos como Osvaldo Aranha, Getúlio Vargas, Flores da Cunha, entre outros. São estes os personagens que entrariam para a história do Brasil, ao desencadear a Revolução de 1930. Bernardi, sempre engajado com os movimentos sociais, aceitou o chamado de Getúlio, do qual redigiu o manifesto Ao Rio Grande e ao Brasil, em 11 de outubro de 1930. Além disso, ocupou a função de diretor do Serviço Oficial de Informações. Estabelecido no Rio de Janeiro, e por ter exercido suas funções com responsabilidade no Tesouro do Estado (RS) em 1910, Oficial de Gabinete da Província (1917), Oficial da Secretaria Fazenda (RS), em 1919, prefeito de São Leopoldo (1919 a 1923), o italiano recebeu nomeação como diretor da Casa da Moeda, em 1931.
Na sua gestão, elaborou o projeto da criação do sistema monetário nacional que criou o Cruzeiro, redigiu a lei que regulava a Loteria e propôs a criação do Instituto Nacional do Livro.
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Vila Bernardi, a residência
Visitar a Vila Bernardi, em Veranópolis, possibilita rever elementos de um personagem repleto de riquezas culturais. A residência de poeta, localizada numa colina do município, abriga um ambiente carregado de magia literária. O casarão, em estilo florentino, está emoldurado por belos canteiros de flores, canto dos pássaros, árvores frutíferas.
O local evidencia-se como uma das atrações turísticas de Veranópolis, com atendimento aos visitantes mediante agendamento (54 3441.4658).
Na primeira sala, percebe-se de imediato um piano e álbuns de fotografias. No piso superior, um corredor exibe dezenas de imagens de pessoas que um dia tiveram amizades com a família Bernardi. Os móveis são autênticas obras em esculturas, cujos entalhes em madeira maciça recordam épocas clássicas das antigas mansões. Um oratório, decorado com vitrais, valoriza a estética do ambiente e exprime a afeição religiosa do poeta. O itinerário do visitante encerra-se nos dois espaços da biblioteca, composta por 6 mil livros. Os retratos de Bernardi fazem companhia a Machado de Assis. Cartas, cadernos de estudos, objetos pessoais e presentes de amigos representam parte da vida social de Bernardi. Entre os documentos, um título de eleitor expedido em 1910 integra um acervo fascinante para quem admira os memoriais de personalidades da história.
O passeio é acompanhado por Marco Antonio Bernardi, 69 anos, filho de Bernardi. Mesmo sendo recebido sem aviso prévio, Marco Antonio gentilmente se prontifica em mostrar o casarão de forma atenciosa e explicativa. Cada peça possui uma narrativa peculiar. Ele salienta que a mobília e os livros recebem limpeza e tratamento permanentemente.
Na despedida, Marco Antonio oferece um livro que compila artigos de autores famosos que um dia enalteceram a existência de Bernardi. O gesto sereno denota uma gratidão por ter visitado a memória do escritor.
Retorno à Serra, onde fixou raízes
Após deixar a Casa da Moeda, Mansueto Bernardi retornou a Veranópolis. Ali permaneceu para sempre. Sua primeira atividade foi a de professor (1905). E foi nesta comunidade onde dedicou seus últimos esforços, incentivando a construção de três escolas. Ou seja, o poeta não apenas acreditou na educação, mas ofereceu seu esforço físico para erguer ambientes para os estudos. Filho do escritor, Marco Antonio Bernardi enfatiza que o pai também constituiu empreendimentos para fomentar a produção de vinhos e massas. Hoje, uma biblioteca pública e um concurso literário eternizam a memória do poeta em Veranópolis.
É, também, possível adquirir esse livro de coletâneas que tornam perene a riqueza humana de Bernardi. A obra organizada por Elvo Clemente e Aline Rulian Germann (2008) compilou artigos de familiares, amigos e escritores. Dentre eles, destacam-se, Lindolfo Collor, que elogia a obra Terra Convalescente, publicada em 1918. Collor afirma que a única verdade é a poesia. O saudoso Erico Verissimo relata o ambiente laboral de Bernardi na Livraria do Globo, de suas características físicas e inclinação maquiavélica para a política, que alternava com inocências e doçuras franciscanas.
O jornalista Antônio Hohlfeldt, por sua vez, talvez preocupado em não sacrificar nenhuma informação biográfica de Mansueto, dedicou 12 páginas numa abordagem consistente. Hohlfeldt traduz a caminhada de Bernardi de forma coerente, dando maior profundidade aos movimentos do poeta. Acerca da saída da direção da Casa da Moeda, Hohfeldt esclarece que foi por motivos políticos, depois de ter sido preso durante a militância integralista, regime antagônico ao Varguismo. A polícia de Vargas desapontou Mansueto, que, anteriormente, na véspera da Revolução de 1930, anunciou no poema Setembro-Novo Dia, o idealismo por mudanças no Brasil. No final da poesia subliminar, a frase contundente encerra assim: "As próprias sepulturas vão florir". Neste fato, Walter Spalding (1975) recorda que Getúlio Vargas, depois de ler na Revista do Globo, disse: "Cuidado, a ideia da Revolução está muita clara!". E, por uma coincidência, Bernardi viria a morrer em setembro.