Daniel Munduruku é indígena. Também é escritor, com cerca de 50 livros publicados (a maioria voltada ao público infantil abordando a temática indígena), tem graduação em Filosofia, História e Psicologia, doutorado em Educação e pós-doutorado em Literatura. É ainda diretor presidente do Instituto UKA - Casa dos Saberes Ancestrais e recebeu diversos prêmios no Brasil e no Exterior, entre eles o Jabuti, o prêmio da Academia Brasileira de Letras e a comenda da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República. Já participou das feiras do livro de Bolonha, Frankfurt e Paris (também esteve em Caxias do Sul, em 2008), e visita escolas do país inteiro divulgando suas obras e a cultura de seus ancestrais.
Militante da causa indígena, ele mantém o blog Mundurukando, onde publica artigos sobre a temática indígena. Uma das causas que defende é o fim da visão estereotipada do "índio" - a própria palavra, diz, é carregada de preconceito.
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Confira a entrevista que ele concedeu ao Pioneiro:
A visão que muitos brasileiros ainda têm dos povos indígenas é aquela visão estereotipada, às vezes passada pela escola, de pessoas vestidas com penas e vivendo isoladas na floresta, ou então a imagem de "selvagem" dos faroestes americanos. Na sua opinião, quais são as principais distorções que ainda subsistem nesse imaginário?
Infelizmente, é muito difícil arrancar da cabeça das pessoas ideias estereotipadas. Como se não bastasse esse rol que você me apresentou, há também aquelas imagens ideologizadas de que é preguiçoso, atrasado, atrapalha o progresso e o desenvolvimento, é incompetente... Entre os mais recentes, tem essa ideia de que o "índio" é falso ou "inventado" ou que vive às custas dos programas sociais do governo, tais como bolsa família, cotas, ou ocupando cargos. Tudo isso é pura ignorância de quem quer perpetuar a colonialidade do pensamento. O fato é que nos dias atuais as populações indígenas estão mais conscientes de seus direitos e os estão exigindo. É uma forma de re-existência capaz de estabelecer uma nova relação com o Brasil.
E quem é o indígena hoje?
Dizia anteriormente que os tempos são outros. A visão que se tinha no passado - e que sobrevive até os dias de hoje - é equivocada, excludente. É uma visão que marginaliza, inferioriza e o coloca em uma situação de degradado social. Ser indígena hoje é estar antenado com a realidade que nos cerca. É saber atualizar a própria cultura para que ela se adeque a este presente que vivemos. É participar da vida da sociedade brasileira sem abrir mão do que se é. É usar a tecnologia a seu favor, estudar na universidade, participar do mercado das trocas simbólicas, é alimentar a fraternidade entre as pessoas. Enfim, é ser um ser desse tempo e exigir que as pessoas compreendam isso sem nos rotularem ou sem nos relegarem a papéis secundários dentro da sociedade.
Em seus artigos e entrevistas, o senhor discorda do uso de termos como "índio", que, além de incorreto, seria pejorativo. Por quê?
A palavra índio é um apelido que nos colocaram. Ao longo da história ela foi ganhando novos significados até chegar aos nossos dias com uma carga ideológica muito forte. Pergunto: quem gosta de ser apelidado? quem gosta de ser identificado por um jeito de ser que não corresponde à verdade? Lembre: apelidar alguém é diminuí-lo, humilhá-lo, rebaixá-lo. O apelido serve para marcar nas pessoas o que a gente pensa a respeito dela. Quase sempre o apelido fala de uma ausência em relação aos que se acham perfeitos. Assim, quando falo que alguém é índio eu quero dizer que ele é selvagem, preguiçoso, violento, atrasado...Ou seja, digo que ele é o que eu não sou. A isso, mais recentemente deram o nome de bullying ?que uma forma de tortura física ou psicológica contra outrem. Foi isso que o Brasil fez com os povos indígenas desde 1500. Eu não quero ser chamado por um apelido que nega minha cultura. Eu quero ter o direito de ser quem sou... e ponto final.
Como o senhor vê a comemoração do "Dia do Índio"?
Acho que é um dia que perdeu o sentido. Esse dia serve para comemorar uma imagem que não é real. Não existe esse índio comemorado nesse dia justamente porque ele repete todo o estereótipo dos quais falei acima. Penso que as escolas precisam mudar sua visão dos povos indígenas. Se fizerem isso, naturalmente que sua compreensão a respeito desse dia também mudará.
Até a Constituição de 1988, o índio era visto pela legislação (Lei nº 6.001/73, ou Estatuto do Índio) como "relativamente incapaz", quase o equivalente a um menor de idade e necessitado da tutela do Estado, o que inclusive era ensinado em muitas escolas. Esse tipo de discriminação persiste?
Junto com todas as outras. O tal estatuto já está ultrapassado há muito tempo. Cabe ao Congresso Nacional colocar na pauta das suas discussões a nova proposta que já tramita por lá há quase 20 anos. Agora, mais que uma lei precisamos de cidadãos brasileiros que sejam capazes de olhar para o diferente e perceber que isso é apenas uma questão de perspectiva. Mudando a perspectiva, muda-se a visão preconceituosa.
Falando em escolas, desde 2008 o Art. 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) prevê a obrigatoriedade do estudo da cultura indígena nas escolas. Qual a importância disso? E pelo que o senhor tem visto, essa lei está atingindo seu propósito?
A lei foi sancionada e está valendo. Não é perfeita, mas responde às nossas expectativas no sentido de se colocar, em nível nacional, a questão indígena. Na medida em que os professores forem melhores preparados para pensar essa temática, muitas mudanças acontecerão na sociedade.
O que professores, imprensa e os próprios povos indígenas podem fazer para passar uma imagem mais correta dessa cultura?
A imprensa tem de parar de tratar esses povos como se fossem iguais abolindo o uso da palavra índio em seus noticiários, editoriais, manchetes e reportagens; os professores precisam sair de seu comodismo e buscar atualizar suas informações para não continuarem repetindo estereótipos nas cabeças das crianças; os povos indígenas precisam tomar consciência de seu papel cidadão, exigir direitos e não se contentar com as migalhas que lhes são oferecidas (isso vale para todos os cidadãos brasileiros).
O senhor tem, como escritor, levado seus livros a vários países por meio da participação em feiras e pelas traduções. Isso ajuda a desmistificar a imagem dos "índios" brasileiros também lá fora?
Nunca me preocupei em levar uma imagem correta para o exterior. Participo dos eventos como um profissional que sou, mas não tenho intenção de mudar nada fora do meu país. Minha meta é o Brasil; meu desejo de mudança mora aqui; meus livros são para as crianças brasileiras; meus parentes vivem nessa terra e é aqui que concentro minha energia. Claro que, ao sair do país, procuro ser um brasileiro nativo que ama sua terra e procura representá-la com dignidade. Procuro me conservar um bom cidadão brasileiro para que os que vivem no exterior possam ter convicção de que tenho orgulho em ser brasileiro (e isso nada tem a ver com o futebol ou carnaval). É isso.
Entrevista
"Eu não quero ser chamado por um apelido que nega minha cultura", diz Daniel Munduruku
Escritor e pós-doutor defende que os indígenas devem estudar e usar a tecnologia a seu favor
Maristela Scheuer Deves
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