Como escreveu no já clássico Viagem Solitária, João Nery, um dos primeiros homens trans brasileiros a falar sobre sua condição, a opção de mudança de sexo é uma ousadia libertária: "Não conseguia entender por que me tratavam como se fosse uma menina! Faziam questão de me ver como nunca fui. Algo estava errado."
Para mudar esta condição de incomodação, muitas mulheres resolvem reconstruir sua identidade, tornando-se transhomens. Existem identidades transmasculinas. Por exemplo transhomem, homem trans, FTM - que significa female to male, - somente trans, somente "homem". Essas identidades são "autodefinições", ou seja, a gente sempre leva em conta como as pessoas se "auto identificam" _ explica a pesquisadora sobre transmasculinidades Simone Avila, autora do livro Transmasculinidades: A emergência de novas identidades políticas e sociais.
No contexto, da Serra o, Taynah virou Bernardo, Carolina agora é Rafa, Cleidiani decidiu ser Everton. Para romper a solidão de um corpo aprisionado a um gênero que refuta, esses homens transitam ousadamente para uma nova vida.
- No início as pessoas me olhavam com choque. Sempre foi de choque, um susto. Mas, minha mãe, que sabia desde criança, sempre me ensinou a me impor pelo respeito, seja como lésbica, homossexual, bissexual. Hoje eu lido muito bem com os comentários alheios, até acho graça. Não consigo ficar muito tempo com isso na cabeça - conta o bento-gonçalvense Bernardo Dal Pubel, 25 anos, que já foi Taynah e hoje tem novo aspecto graças principalmente ao uso de testosterona, mas inclui uma futura mastectomia.
Essa sensação de inadequação também perseguiu a vida de Rafa Shicora, 19, quando ele era Carolina. A mudança de visual começou aos 11 anos. A mudança física ele deve começar em breve. Tem o apoio e a parceria da namorada Débora, 17.
- As pessoas te olham estranho por tu ser diferente e com a transformação isso é mais complicado - diz Rafa, que andou enfrentando dificuldades para conseguir emprego que lidasse com o público: - Acho que têm receio do que as pessoas vão dizer.
Everton Santos Dias, 25 anos, assumiu este nome há uns quatro antos. Antes era Cleidiani. Mas se sentia deslocado.
- Desde pequeno sempre me senti diferente das meninas. Nunca me senti mulher. Pensei que só fosse lésbica, mas quando conheci a minha mulher ela me ajudou a me entender. Fui atrás de mais informações pois este é um assunto sério. Agora estou pensando num tratamento para a mudança, vou ao endocrinologista, ao psiquiatra e ao psicólogo. Também penso em mastectomia - descreve Everton.
Tatiana Lionço, professora de Psicologia da UnB, contextualiza a questão:
- Os homens trans passaram a se articular sobretudo já terminada a primeira década do século XXI, tendo as primeiras associações de mobilização política surgido recentemente, como é o caso da Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT). Acredito que o que essas pessoas têm reivindicado é a igualdade de direitos, o acesso a procedimentos de cuidado à saúde incluindo modificações corporais, o reconhecimento de suas identidades de gênero sem a tutela médico-jurídica e fundamentalmente o reconhecimento como subjetividades e vidas legítimas, sem o estigma da patologia ou da atribuição do erro moral. Não posso falar por essas pessoas, mas eu diria que acompanhando suas lutas eu acredito que querem ser simplesmente reconhecidas como seres humanos por meio da abolição de medidas arbitrárias de hierarquização de valor, querem como todas as pessoas simplesmente existir sem precisar provar que merecem, querem existir sem precisar negociar seu valor no mundo.
A pesquisadora Simone Avila acredita que o encaminhamento social para a questão dos transhomens inclui a criação de uma rede (de leis, entidades, associações ...) para ter, minimamente, um convívio mais equilibrado na sociedade.
- Vivemos em uma sociedade extremamente preconceituosa, binária, cheia de caixinhas, na qual qualquer sujeito que não se "enquadre", seja em termos de identidade de gênero, seja em termos de orientação sexual (que são coisas diferentes), é excluído, colocado à margem e tem seus direitos humanos negados. Todo esse preconceito provoca inúmeras violências, que podem até levar à morte, como é o caso da transfobia.
Nesse contexto, existe a perspectiva de legislação específica:
- No campo legislativo, na Argentina, por exemplo, há a Lei de Identidade de Gênero desde 2012, que permite que qualquer pessoa que queira mudar o nome de registro pode faze-lo, sem ser obrigada a ter um "diagnóstico" de "transexual" ou fazer mudanças corporais ou procedimentos cirúrgicos. Essa é a lei mais inovadora que existe no mundo. No Brasil há o Projeto de Lei de identidade de Gênero, proposto pelos deputados Érika Kokai e Jean Willys, que no momento está em tramitação, nos mesmos moldes da lei argentina. É obvio que somente isso não resolve todos os problemas, mas com certeza seria um grande avanço e resolveria a questão do nome, que é um grande problema para as pessoas trans. Por exemplo, você ter a aparência com o gênero que você deseja, por exemplo, gênero masculino, e ter na carteira de identidade o seu nome de registro (feminino) o impede de coisas muito simples, como abrir uma conta no banco, conseguir um emprego... além, claro, dos constrangimentos morais que situações como essa provocam.
Sexualidade
Transhomens buscam afirmação social em Caxias e região
Em sintonia com movimentos nacionais e internacionais, meninas optam por identidade masculina
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