Boa nova para os dias frios: a Netflix trouxe ao seu catálogo uma leva de ótimos filmes brasileiros. Já era mais que tempo. Nada justificava a plataforma de streaming mais popular do país ser tão pobre em títulos nacionais. Então, devo celebrar a chegada de clássicos como Rio, 40 Graus (1955) e Vidas Secas (1963) em meio a outras joias como A Dama do Lotação (1978), A Ostra e o Vento (1997) e Central do Brasil (1998). São mais que filmes icônicos em seu tempo. São peças artísticas imperecíveis por mapear aspectos marcantes da cultura brasileira. Sim, são obras que, entre dores e delícias, revelam o Brasil. E como precisamos voltar a nos reconhecer como país para enfrentar o que tenta nos dividir!
Sem falar dos próprios diretores, os filmes escolhidos entrelaçam nomes, eventos e facetas importantes de nossa rica trajetória identitária. Rio, 40 Graus, por exemplo, foi a obra de cru realismo que inaugurou o Cinema Novo, movimento de nossa expressão nas telas que conquistou o mundo. Vidas Secas veio do romance homônimo de Graciliano Ramos, clássico de nossa literatura. A Dama do Lotação adapta conto de Nelson Rodrigues, provocativo ao expor as tensões entre amor e sexo — e tem Sonia Braga como estrela e Caetano Veloso na trilha sonora. A Ostra e o Vento conta com Lima Duarte no elenco e trilha de Chico Buarque. Já Central do Brasil fez Fernanda Montenegro ser indicada ao Oscar. Sentiu o Brasil que emerge desses filmes?
A galeria de referências culturais e históricas segue vibrante em outros títulos da seleção brasileira no gênero ficção. O poético Mutum (2007) foi adaptado de novela de Guimarães Rosa. Terra Estrangeira (1995) é um retrato pungente da desesperança do país na Era Collor. E Aquarius (2016) é um assombroso painel desses atuais tempos de capitalismo predatório.
E não faltam belos títulos do gênero documentário. A Luz do Tom (2013) revela Tom Jobim pela memória de mulheres ligadas a ele. Filhos de João (2009) conta a história do grupo Novos Baianos e sua relação com o mestre João Gilberto. Uma Noite em 67 (2010) se debruça sobre o famoso festival que redefiniu os rumos da nossa música popular, enquanto Mamonas para Sempre (2009) mostra a saga do irreverente e meteórico grupo juvenil. E ainda há quatro pérolas emocionantes do saudoso Eduardo Coutinho: Santo Forte (1999), Jogo de Cena (2007), As Canções (2011) e Últimas Conversas (2015).
Claro que também há filmes mais recentes e já badalados, como Sem Coração (2023). E o que por primeiro me seduziu foi Pacarrete (2020), que eu queria ver desde sua vitória absoluta no Festival de Gramado. Dirigido pelo cearense Allan Deberton, que se inspirou numa figura real da interiorana cidade de Russas, o filme acompanha a personagem homônima em sua luta para apresentar um número de balé na festa municipal. A excepcional Marcélia Cartaxo vive Pacarrete, uma já idosa professora de dança que insiste em ser relevante.
Pacarrete toca fundo em nosso coração. Doida e sublime, ressentida e compassiva, raivosa e romântica, ela simboliza a universal dor humana diante dos desencantos da vida. E a gente se identifica por cada ideal pessoal devorado pelo tempo ou pela incompreensão alheia. E a gente sonha com a volta de uma delicadeza perdida, com um país menos áspero com seus filhos mais carentes.
Se ondas nefastas de hipocrisia e intolerância tentam hoje nos engaiolar em crenças e ideologias, nossa arte surge redentora — livre, qual pluma de cisne, que vai indo pelo vento, subindo, subindo, em delicado balé aéreo, até nos levar ao céu. Voa em teu cinema, Brasil!