Há cerca de dois anos conheci um profeta despido de dogmas. Não usava amuletos, nem empunhava um cajado. Daquelas imagens criadas pelos filmes épicos, ele só tinha o cabelo comprido e a sandália de couro. Confesso que ao nos cumprimentarmos, à distância, porque a pandemia começava a nos forçar a uma nova interação social, eu não conseguia me concentrar no que ele dizia, porque ressoava dentro de mim a maneira como ele se apresentou:
— Me chama de Profeta Urbano...
Urbano é um cara da cidade, que tem o cheiro da rua. Enquanto estava ali, diante dele, meu pensamento vagou até a Praça Dante Alighieri, no centro de Caxias. Com a mente eu escaneava as minhas memórias caminhando por sobre as calçadas portuguesas, tentando desvendar se eu já não tinha visto o profeta em meio àquelas pessoas que vivem, transitam ou apenas passam um tempo por ali.
Quando me dei conta, em meio a essa viagem através do tempo e do espaço, um pouco com o pensamento lá na praça e, outro tanto, com o olhar fito no profeta, percebi que havia umas quinze pessoas ao nosso redor. É como se elas tivessem sido atraídas por algo que vai além da nossa compreensão. Então, assentei as ideias e foquei no sentido do nosso encontro.
Fui pautado para conhecer o abrigo temporário criado para acolher moradores em situação de rua de Caxias, nos pavilhões da Festa da Uva. Naquele tempo, pouco ou quase nada se sabia sobre o tal coronavírus. Bom de papo, como se antevisse minha pergunta, explicou porque era reconhecido como um profeta.
— Procuro profetizar pra essa gente só coisas boas, sabe. Então, não tem o profeta religioso? Eu sou o profeta do povo, mais ligado à arte.
Com tempo para ouvi-lo, compreendi o sentido de arte para ele. Não como adorno, mas como fissura na alma. Suas pinturas e desenhos não cabem em qualquer parede, porque, em grande parte, seus traços cortam como adaga e em nada afagam. Nas pernas, nos braços e no peito, ele exibia tatuagens que fez em si mesmo. Mais do que um desenho, são registros de uma vida de mais de 40 anos nas ruas.
Vez ou outra, ele me envia mensagem pelo Whatsapp. Aparece e some com a destreza de quem aparece no tempo certo para entregar uma palavra e depois some, porque nunca quer ser maior e mais digno do que o mensageiro que o envia. No último contato, me disse que havia terminado a escrita do livro com registros em texto e desenhos sobre o tempo em que permaneceu acolhido no abrigo temporário nos Pavilhões.
Um livro que nasce obtuso porque não aponta caminhos de engrandecimento e sucesso financeiro, bem típico nas listas de mais vendidos. Ruas da vida é profundo, intenso e dolorosamente verdadeiro, porque expõe a vida como ela é, sem filtros.