Tem sido assim. Abrimos os jornais e há injustiças e mediocridades por todos os lados. Parece que os ditadores se organizam para os próximos mil anos. O poder parece um objeto que passa de um lado para outro. Não se ouvem outras vozes, dissonantes, inquietas, contestadoras. Alguns gritam na internet, mas das cozinhas e das panelas vazias, nada. As ruas andam silenciosas, cinzas, despreparadas para novos e importantes passos. No mercado tudo está mais caro, no posto de gasolina também. Uma espoliação. Mas dizem que é por coisa do outro mercado, das variações cambiais, do coronavírus. Tenho uma certa simpatia pelos alienados, não sabem de nada do que acontece ao redor e conseguem ser felizes todos os dias. Eles têm sonhos ainda, conseguem tomar chimarrão sem medo de nada e sorriem de um modo alienado e feliz.
A gente se assusta com a fala de quem está com o poder, mas mais assustador é quem nunca vai ter tal poder e fala igual. Quem ousa dizer o contrário? Quanto de nós ali no outro, nos outros? Quanto do não dito que se cala e desaparece? Seria medo? Insegurança? Descrença, talvez seja falta de esperança mesmo.
Tenho a impressão que há muito tempo saímos em uma viagem sem volta. Não sei se seremos como Ulisses, talvez nossa única chance seja seguir em frente. E haverá fôlego para cruzar décadas, pessoas, sistemas, nós mesmos? Às vezes, diante do espelho não reconhecemos mais nossa própria face, nem as das pessoas mais próximas. Alguns se transformaram numa máscara de madeira com laca, cheia de sulcos e túmidas veias, parecem vivos, mas já venderam a alma há tempos.
O futuro parece escuro. As águas de março ainda lembram o verão, talvez por isso a nostalgia, mas também trazem de volta a realidade. Trazem nossos frágeis desejos de benignos em meio a um reinado que parece- não parece ruir. E onde estão os outros?
Ontem encontrei com rostos entusiasmados, sem idade, prontos para cambiar as estações. Pessoas como eu e como tu que apenas querem abrir um pouco as janelas, deixar o sol entrar, redescobrir velhos livros nas prateleiras, passear com o cachorro, viver e conviver com a dialética, ouvir uma boa música, antiga e nova, usar sapatos confortáveis, saber que é preciso compreender, plantar um jardim à espera de pássaros, viajar sem julgamentos, cantar sem ser louco, escrever e ser lido, e viver num tempo mais cordial, sem medo, sem mediocridade e onde a ignorância não é vista como virtude.