Pela primeira vez, o Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, será feriado no Brasil. Com o objetivo de valorizar a luta e a cultura dos povos negros, a data faz alusão à morte de Zumbi dos Palmares, líder quilombola que lutava contra a escravidão no país.
Mas se há feriado nesta data é porque existe uma história para justificá-lo — neste caso, de escravidão, racismo e segregação, mas também de luta e resistência.
É o caso de um episódio que ficou marcado na história de Passo Fundo, no norte gaúcho: há 112 anos, a sociedade passo-fundense, no norte gaúcho, escancarava o racismo ao barrar a presença de negros em clubes sociais da cidade.
Foi a partir disso que aconteceu a primeira reunião do que se tornaria o Clube Visconde do Rio Branco — espaço para receber os negros barrados nos clubes sociais, fomentado pelo racismo da época.
— Essa restrição era estatutária. Os clubes tinham em seus estatutos essa condição e descrição de quem podia ou não ser membro e frequentar o local — explica a professora do curso de História da Universidade de Passo Fundo (UPF), Gizele Zanotto.
O movimento começou em 1912, quando 11 homens negros (veja a lista abaixo) criaram a Sociedade José do Patrocínio, em homenagem ao abolicionista brasileiro. O objetivo era criar um espaço de sociabilidade, lazer, cultura e diversão à comunidade local.
Quatro anos depois, em 23 de abril de 1916, o grupo passou a se chamar Clube Visconde do Rio Branco — que, além de guardar a memória do movimento negro da cidade, também foi o primeiro clube com uma diretora mulher, Dona Madalena.
Com o intuito de abrigar e incluir negros que não eram bem-vindos em outros clubes sociais do município, os membros do Visconde do Rio Branco investiram suas economias e construíram a sede própria, inaugurada em 1932.
O espaço ficava na esquina das ruas Morom com Vinte de Setembro, no bairro Boqueirão — região à época periférica e conhecida historicamente por ser morada de muitos negros livres em Passo Fundo.
Ali aconteciam festas como Carnaval, bailes de debutantes e manifestações dos povos afro-brasileiros, como congadas, ternos de reis e bumba meu boi.
Fundadores do Clube Visconde do Rio Branco
- Candido Bernardo da Cruz
- Claro Severo
- Bento Isaias
- Claro Pereira Gomes
- Antão Bernardo da Cruz
- Salomé de Almeida
- Domingos de Almeida
- Eugenio Mello
- João Theodoro de Almeida
- João Bernardo da Cruz
- Claro Pereira Gomes.
Na década de 1990 o prédio chegou a passar por um processo de reconstituição e patrimonialização, mas crises financeiras e de gestão impediram que a sociedade seguisse em frente. Assim, o clube foi quase que totalmente destruído antes dos anos 2000 e, hoje, só as paredes seguem no local.
Quem viveu o clube
Aos 93 anos, Maria de Lourdes Isaias da Cruz ainda lembra da noite em que foi coroada como rainha do Clube Visconde do Rio Branco, na década de 1950. Era durante a semana do aniversário de fundação que os bailes aconteciam e os associados escolhiam a representante que seguiria no cargo por um ano.
— Naquela época eu ainda não era casada, tinha que ser solteira para participar da seleção. Lembro que fiquei nervosa porque tinha que fazer um pequeno discurso. Meu vestido era branco e naquela época se usava uns vestidos bem rodados. Era bem bonito — conta.
Ela e o marido, Adyl da Cruz, são descendentes dos fundadores da Sociedade José do Patrocínio — inclusive, a primeira reunião do grupo foi na casa dos avós paternos de Maria de Lourdes.
— Eu e a minha família participamos de muitas festas boas no Visconde — recorda ela.
O racismo, contudo, também é difícil de esquecer: Maria de Lourdes lembra de experiências em estabelecimentos da cidade onde, incontáveis vezes, deixou de ser atendida por ser negra.
— Teve um episódio em que fomos comprar tecido para fazer um vestido para a minha filha. Fomos em uma loja na Avenida Brasil e me lembro que tínhamos escolhido um tecido lindo, mas a dona da loja nos falou que aquele era muito caro, dando a entender que não teríamos dinheiro para pagar ou que não era para a gente — relata.
Mesmo com mais posses que outras famílias negras do município, Maria afirma que o preconceito sempre foi comum no dia a dia:
— Meu pai conseguiu uma posição no Exército, então isso acabou nos posicionando melhor na sociedade, ele era respeitado. Hoje vejo que o preconceito de alguns é velado e outros ainda vêm do coração. Minha família sempre me incentivou a estudar para ser alguém na vida. Fiz Pedagogia e virei professora. Percebo que com o passar do tempo as coisas foram evoluindo e hoje temos até feriado oficial.
Atualmente, por conta de problemas de saúde, ela e o marido contam com o apoio de uma enfermeira cuidadora diária. Isso, para Maria, é uma evolução.
— Hoje temos brancos nos servindo e antigamente isso era praticamente impensável.