* Doutora em Teoria Literária
Li dois textos que falam de Caetano Veloso, por alusão ao seu aniversário de 75 anos, que me mobilizaram por razões opostas. O primeiro, de Guto Leite, professor da UFRGS, pela sapiência e verdade; o segundo, de Luciano Alabarse, dramaturgo e Secretário de Cultura de Porto Alegre, pela náusea que provoca.
Há uma expressão corrente no Nordeste – "comparar Nosso Sinhô com Zé buchudo" – usada quando uma relação de semelhança entre pessoas é estapafúrdia, descabida, ofensiva, indecorosa, desarrazoadíssima. Blasfêmica.
Parece que a cidade de Porto Alegre se expande num grande picadeiro para uma tragicomédia, quando o seu claudicante prefeito é comparado ao mais brilhante artista da música brasileira, igualando-os na incompreensão do público frente aos seus propósitos de mudar o mundo.
Outros setenta e cinco anos ainda seriam insuficientes para envelhecer ou calar o artista mais vigoroso, contundente, inventivo e atual da música brasileira. As diversas e múltiplas concepções do mundo, as interpretações do Brasil, as profecias estéticas, as versões de si mesmo colocam Caetano como protagonista de um panteão de imensos artistas brasileiros! Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Chico Buarque, Gilberto Gil, todos afirmaram que Caê é o estandarte desses tempos, e não sei se eles mesmos podem rivalizar com o filho de dona Canô.
Em uma de suas profecias, Caetano afirmou que "um índio descerá de uma estrela (...) pousará no coração do hemisfério sul / Depois de exterminada a última nação indígena / E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida / Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias ". A canção antecipa o futuro de uma geração que necessitará da intervenção de um Deus para quitar suas contas. Contas que nós, a América Latina em pó, nunca cessamos de fazer crescer. Parece que o cenário já se configurou e o futuro chegou, pois que estamos concluindo o trabalho de extermínio da última nação indígena e sangrando para o vazio as fontes que já não podem alimentar o espírito dos pássaros. No ousado verso que repete um vocábulo três vezes, o profeta baiano não ignora que o "Índio" terá de ser tão avançado a ponto de superar e dominar, em meio aos fogos de artifício que saúdam a festa do capital desenfreado, a barbárie na qual estamos imersos.
Quem será o índio que nos arrancará à casa dos vendilhões? Onde estamos e quem somos, ó povo brasileiro? E os irmãos latinos, paralisados pela mesma sorte? Quiçá o Marchezan seja o nosso redentor, impávido, infalível, como Caetano Veloso? Isto é risível, indecoroso!
Ferida de morte no fogo/jogo entre corruptos e corrompidos, nossa voz terá de ser ouvida, mesmo "enquanto os homens exercem seus podres poderes". Adulando os mandões, "somos uns boçais"! Sim, Alabarse, boçais! O que pretende uma pessoa, supostamente artista, quando insulta de forma tão desarrazoada um grande artista brasileiro? Ultrajar mais ainda o povo gaúcho? Ampliar o picadeiro de seu circo de horrores? Ora, isto é comparar Nosso Sinhô com Zé buchudo!.