"Borandá", hoje em dia, é nome de um ótimo selo de gravação de excelente música brasileira contemporânea, tanto de canções quanto de instrumental. Quem tem menos de 50 anos, imagino, terá dúvidas sobre a palavra. Quer dizer algo?
Sim, quer: é nome de uma canção de Edu Lobo, lá dos anos 1960 profundos, quando ele, com Chico e outros artistas engajados, formulou o que se chamou de MPB, que não era toda a música popular brasileira – conceito amplo – e era, mais restritamente, uma linhagem de canções daquele contexto de briga com a ditadura, mediante uma aliança estética e política entre letras engajadas nas posições de esquerda (reforma agrária, fim da censura etc.), de um lado, e ritmos originalmente praticados pelo povo.
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Essa letra começa conclamando: "Vam’borandá, que a terra já secou, borandá". Por extenso: "Vamos embora andar, que a terra já secou". A quem se dirigia a exortação? No plano interno do texto, em seu enunciado, era uma convocação aos que, como a voz que fala, padeciam da seca – e a seca era um dos grandes temas da MPB de então, motivo de denúncias do descaso das autoridades para com os miseráveis e de acusação contra os latifundirários insensíveis.
Mas no plano da canção em sua dimensão performática, quer dizer, da canção quando cantada e ouvida, a segunda pessoa a quem se dirigia a voz do cantor eram as classes médias politizadas, que se solidarizavam com o combate à miséria e ao latifúndio.
Fiquei com a palavra na cabeça esses dias, quando, ao trabalhar diante desta tela em que agora deponho estas palavras que o leitor está lendo, botei pra tocar uns discos do Edu Lobo – não se aperte, prezado leitor: vá ao YouTube e digite lá o nome do Edu, que logo desabarão inúmeras possilidades de audição. Comecei com a Missa Breve, disco de 1973 que eu conheci ouvindo a finada rádio Continental, de brilhante história. (Como eu, o Sérgio Karam também gosta muito do Edu. Bota lá o "Vento bravo", meu, e deixa a maravilha chegar.)
Passados uns dias, a palavra "borandá" seguiu boiando na memória, e de algum modo convocou outra expressão nascida ou popularizada na mesma época, "simbora". A associação se impõe: há aí dois "embora" que não são nem encarnações da conjunção concessiva nem o advérbio em sua acepção primeira nos dicionários ("embora" veio de em+boa+hora, num momento oportuno) mas o advérbio em seu sentido dominante entre nós, a retirada, o cair fora.
Na minha memória, o "simbora", ou com o pudor do apóstrofo junto, "s'imbora", se popularizou com Wilson Simonal – e fui de novo ao YouTube, anotei lá "pra ter fom fom" mais o nome do grande suingueiro e bucha: a canção Carango, gíria da época para "carro", que ainda era um símbolo de status e de malandragem.
Está cá na minha memória ele dizendo: "Simbora, um, dois três: camisa verde claro, calça saint-tropez".
E parece que a composição é do próprio Simonal.
"Borandá" era uma convocação para a luta a política implicada na audiência real que Edu Lobo tinha; "simbora" também era uma convocação, mas para a ostentação que se associa com a conquista amorosa das moças que se deixassem fascinar pela máquina cantada pelo Simonal. Uma para a luta, outra para o prazer. Embora, é preciso lembrar, o estribilho da música do Simonal tenha uma referência nada esnobe, nada aristocrática: "Pra ter fom-fom, trabalhei, trabalhei". Era a voz do sujeito que dá duro para conseguir grana, mas depois, já longe da moral burguesa, queria aproveitar as delícias da vida. Hoje, se usa o "boralá". Sim, vamos, mas para o desfrute ou para a luta?