Chegou em casa um pouco incomodada naquela noite. Exausta de tanto trabalhar, havia escutado no rádio do uber a notícia de que a câmara de vereadores havia aprovado a Moção de Solidariedade ao PL 3.722/2012, que busca alterar o Estatuto do Desarmamento. Os nobres querem ter o seu direito de adquirir, possuir e portar armas de fogo e munições. "Armas são sempre pela morte", falou para si mesma antes de correr para o banheiro. Precisava de um banho, antes de mais nada.
"O mundo dos homens é triste demais", pensou enquanto se ensaboava. Lembrava da professora ecoando Deleuze. No elogio do fraco, buscou encontrar alguma potência em ser assim, tão menor. Tentava entender essa fixação por armas pela parcela da população que menos sofre violência na carne. É preto, pobre e trans o corpo que mais morre no Brasil.
Lembrou da matéria sobre o presídio municipal e achou estranho achar normal existir um lugar como aquele hoje no mundo. Antes de deitar, fechou a janela e viu tantos mais agora dormindo debaixo da marquise do outro lado da rua. Tentou achar normal para conseguir apagar.
Quando amanheceu, tomou o primeiro bullet proof coffee de sua vida, e gostou. Pensou em coisas que não pensaria. Teve sensações que ainda não havia sentido.
Quando pisou na calçada, a síndica, a faxineira e o solteirão do quarto andar olhavam indignados para as enormes letras pretas, pichadas a poucos centímetros de suas janelas. Um disse que "eles poderiam ter entrado", outro acrescentou que "não entraram porque não quiseram". Eu disse que não entraram porque não são bandidos, e saí. O solteirão resmungou alguma coisa, mas o play já me levava para longe do mundo. Era uma música da Azealia Banks, 212.
Quando acordei, já estava no hospital. Quarto 212. Não sei se foi ele ou se foi ela quem me atacou pelas costas. Talvez tenham sido os dois. Os três? Nenhum prestou socorro. Tem um vídeo circulando por aí com o momento da agressão, mas não vou assistir. Lembrar ainda é reviver. Talvez um dia não seja mais.
Recebo a visita de um colega de escritório. Ele quer saber o que motivou a discussão, tenta entender por que eu fui agredida. Digo que lembro de pouca coisa. Lembro que o nosso último assunto antes de eu estar caída foi pichação. Ele diz que não gosta de pichação e diferencia pichação de grafite. Eu digo que não gosto de grafite, "me lembra a estética do papel de carta que sempre detestei". Não gosto de nenhuma ideia que inclua embelezar, porque não acredito no feio.
O corpo em pixo é a arte viva. (O movimento é assim mesmo, com X.) São desenhos feitos por um corpo em risco. A queda, os fios elétricos, as viaturas... Tudo é motivo para temer. Suas letras e seus desenhos, perigosamente perto de sacadas e janelas, indicam que "eles" estão ali, mas não querem entrar. Penso que, daqui a muitos anos, quando refletirmos sobre a arte feita hoje, o pixo será o protagonista. Talvez seja, das artes, a que mais desafia as lógicas do mercado.
O médico diz que nunca mais vou andar. Mais do que os vizinhos, foi a arte que me derrubou. Fui violentada por me posicionar frente a uma obra e levarei para sempre, no corpo, o efeito disso.
Aos que duvidam da força dessa manifestação, que ousem defender um pichador. A resposta virá na hora e na carne.
* Ismael Caneppele escreve mensalmente para o Caderno DOC.