Não, o problema não é o Trump. Não é o Temer. Não é o Sartori. Não, o problema não é o Brexit. Não é o Putin. Não é o estado islâmico. Não, o problema não é a xenofobia que culpa o imigrante pela falta de emprego. Não é a islamofobia que vê em cada muçulmano um terrorista. Não é a violência que faz de cada jovem pobre e negro um criminoso potencial. Não, não são os 'coxinhas' com o ajuste fiscal. Não são os 'petralhas' com suas pedaladas fiscais. Não são os 'fascistas' com seus comentários homofóbicos. Não são 'os políticos' corruptos. Não são 'os médicos' que ironizaram a morte da dona Marisa nem tampouco são 'os empreiteiros' sem ética. O problema que temos é muito maior que tudo isso junto.
Em meio a uma complexidade estonteante dos fatos somente podemos fazer sentido do mundo buscando simplificações. Em particular, quando a realidade nos atordoa personificamos as fontes dos problemas como uma maneira de torná-los contornáveis, como se a sua identificação nos desse uma esperança de um mundo menos caótico. Mas a verdade é que a grande maioria dos problemas políticos e sociais que enfrentamos na atualidade não pode ser especificamente atribuída ao Trump ou a ninguém. Ao olharmos as árvores deixamos de ver a floresta e ignoramos que o grande problema que passa no mundo hoje, e não apenas na nossa cidade, é uma profunda crise de alteridade.
A alteridade, definida como 'simpatia' (ou empatia) pelo filósofo e economista escocês Adam Smith, no século 18, é aquela capacidade que potencialmente temos de nos colocarmos no lugar do outro e por consequência imaginar o que significa viver como o outro. A alteridade depende muito dos nossos sentimentos morais e de nossa 'imaginação', como diria a historiadora Sandra Sherman, pois precisamos preencher lacunas de nosso conhecimento ao nos vermos no lugar do 'outro'. Como não podemos viver a vida de todos ao mesmo tempo, resta-nos cultivar nossa imaginação do 'outro' pensando sobre como é viver em suas condições. Bom, isso é a teoria.
Na prática, no entanto, vivemos um momento de ideologias extremamente individualistas e simplistas. Assim, políticos como o Trump são apenas a voz de pessoas que encontram nele uma expressão de seus anseios políticos e pessoais. E quantos são, não? Vale o mesmo para o cidadão satisfeito com a prisão do político ou empresário corrupto mas que no seu cotidiano sonega impostos e vê com tosca alegria o desmanche do serviço público no seu país. Simplificamos e deixamos de ver que fazemos parte do problema pois nossa falta de alteridade é a mãe de todas as crises.
Essa crise deve piorar. Entramos em uma espiral de quebra da imaginação cívica onde as pessoas se protegem apenas falando com seus iguais. O oxigênio da intolerância está se espalhando e os incêndios serão inevitáveis. Precisamos reconhecer que o problema é a erosão da alteridade e do descaso com o bem-comum. Possivelmente apenas seremos resgatados à nossa humanidade por alguma grande tragédia.