Meu entusiasmo pelo Carnaval sempre se limitou aos preparativos. Na hora do vamos lá, nunca entendi por que tinha que pular em círculos sem chegar a lugar nenhum.
Mesmo adolescente, não via sentido naquele interminável rodar pelo salão só pra ver a cada volta o pessoal das mesas mais bêbado. Na verdade, na maioria das vezes, pulei Carnaval como quem vai à escola, faz a primeira comunhão ou festeja o Natal: nunca fui consultada, fazia parte da agenda e não participar estava fora de cogitação. Certa vez, na praia, ainda criança, cansei das marchinhas e resolvi voltar pra casa sozinha, arruinando a folia dos meus pais. Naquele dia entendi por que os adultos sumiam dos bailes infantis, só reaparecendo no final. Aliás, sexo e Carnaval sempre pularam juntos.
Durante a adolescência, um rito de passagem: chegar tarde, virar noite, beijar alguém que você conheceu no salão, primeiras incursões sobre anatomia ou, no máximo, uma prensa, experiências que fazem parte da educação sexual de qualquer adolescente abominavelmente normal. Mais tarde, Carnaval virou sinônimo de feriado e feriado significava fugir para as praias de Santa Catarina e pra bem longe da transmissão do Globeleza. Mas mesmo nos tempos em que o Rosa, a Pinheira e o Sonho ainda eram pequenas aldeias de pescadores, chegava o som da Sapucaí de alguma tevê insistente, ou do samba virando noite em um salão improvisado.
O mesmo som de samba me acordou hoje. Aliás, tenho certeza, que é o mesmíssimo samba e que agora chega vindo da praia, vencendo o vidro duplo, o ruído do ar-condicionado e invadindo meu quarto. Aquele samba gritado, cheio de la-lai-ás e diz-diz-diz-diz-diz-dizzzz
, envolto em um eco que não é efeito especial do meu sonho e que permanece ainda agora, mesmo depois do café da manhã. Sim, como o destino é comediante, moro no Rio e estar na cidade há apenas duas semanas da folia não deixa alternativas, queira ou não queira, sou foliã, tenho o samba pra me fazer companhia e não só ele como também o inacreditável funk carioca e toda sua indecência.
Na capa do jornal a manchete "Braços abertos pra folia - Bloco Espanta Neném arrasta multidões", desfila lado a lado de "Minha Casa Minha Vida - Banco Morada quebrou e R$ 11,8 milhões da União sumiram". Também na primeira página, o cartum do Chico ilustra Graça Foster da Petrobras convidando: "Olha o Carnaval aí, gente!! Vamos mudar de assunto!!!".
O.k., respiro fundo e entendo que é hora de uma reflexão e que, sim, a esta altura do campeonato no Brasil, Carnaval é talvez uma das poucas coisas que fazem sentido, se não, pelo menos ajuda a contextualizar o estado de embriaguez do país.
A boa notícia - por sorte sempre há uma boa noticia - é que o Carnaval de rua renasce, o que de certa forma sinaliza um retorno às origens da festa, alguma capacidade de organização e, com sorte, até uma certa rebeldia.
Ontem, na Lagoa, vi um grupo de diabos e depois três Mulheres Maravilha saindo de um táxi. Tinha Super-Homem, X-9 e até Batman, mas nem os super-heróis do "Desliga da Justiça" eram capazes de me salvar do trânsito que parou pra ver o pré-Carnaval passar: "Imprensa que eu gamo", "Suvaco do Cristo", "Vem ni mim que eu sou facinha", "Me beija que eu sou cineasta", "Simpatia quase amor", "Banda de Ipanema" e, claro, o "Espanta neném" e o "Me deixa"!
Enquanto isso, quem não samba assiste de camarote ao desfile de outros blocos. No consagrado "Me dá um dinheiro aí?", desfilam escândalos patrocinados por administrações corruptas e ineficientes. O bloco do "Caraca! Caracas é aqui" só tem gente de fora, mas você pode participar se comprar a fantasia (a de "Pentacampeão" acabou e "Inflação-não-tem-não" é muito cara, sobram a de "Pré-Sal-sa", "Pai-Preto-Brás" e a sempre popular "Deus-é-Brasileiro").
Claro que é. Só assim se explica como um fiscal de prefeitura tem 55 imóveis avaliados em R$ 20 milhões.
Mas, quando terminar a folia do Carnaval - que veio depois da folia do futebol, da folia da campanha eleitoral e antes da folia olímpica -, vamos precisar de muitos outros milagres. Não só São Paulo está à beira de um colapso, como toda a Região Sudeste enfrentará uma crise hídrica de proporções bíblicas, graças à falta de... Tudo! Inclusive vergonha na cara.
Sim, pular Carnaval é salutar. É preciso expurgar a indignação, a impotência, a paralisia.
O processo de catarse nunca se fez tão necessário
Eu vou beber, beber até cair!
Me dá, me dá, me dá, oi!!?
Me dá um dinheiro aí!!
E emenda:
Tomara que chova três dias sem parar!!!? Oi?
Opinião
Flavia Moraes: piada pronta
Flavia Moraes escreve mensalmente em Zero Hora
GZH faz parte do The Trust Project
- Mais sobre: