Por Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro
Professora de Direito Internacional na Unipampa
Todas as sanções econômicas impostas unilateralmente foram insuficientes para exercerem qualquer tipo de retaliação na invasão da Ucrânia pela Rússia. No âmbito multilateral, o posicionamento da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em não reconhecer os territórios ocupados pela Rússia e manter sanções tampouco foram decisivos para uma abertura maior para Vladimir Putin negociar.
Os 22 anos da autocracia de Putin devem ser compreendidos na sequência do final da Guerra Fria e do caótico fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991, e sua traumática transição para o capitalismo. A Rússia vivencia os anos 1990 com diminuição da expectativa de vida, maior espaço da máfia russa, movimentos separatistas no Cáucaso, na Chechênia, desvalorização do rublo e colapso econômico. Nesse cenário, em 1999, Boris Iéltsin renuncia e, por meio de eleições antecipadas, Putin é eleito presidente. O discurso nacionalista da eleição de Putin contribui para o entendimento de sua conduta na Ucrânia, na ocupação das províncias de Donetsk e Lugansk e o reconhecimento de sua independência.
A dimensão geopolítica da Rússia tem que ser considerada. No processo de criação da ONU, sucessora internacional da antiga Liga das Nações, a Rússia de Josef Stalin era vista como imprescindível para compor a nova organização, como aludiu Franklin Roosevelt (presidente estadunidense). Conforme aborda Eugênio Vargas Garcia em seu livro O Sexto Membro Permanente: o Brasil e a Criação da ONU, na Conferência de Yalta se revela o poder de veto que teriam os cincos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (CSNU) – China, Rússia, Estados Unidos, Reino Unido e França. A motivação seria o fato de esses países possuírem poder militar e industrial de modo que conseguiriam impedir agressões cometidas por outros Estados. Como Rússia e China possuem poder de veto, não houve nenhum tipo de resolução do CSNU que tornasse obrigatório o cessar-fogo ou algum tipo de medida para coibir os militares russos.
Para analisar a magnitude desse país, também é importante ressaltar a perspectiva histórica do império russo em suas relações bilaterais com a República Federativa do Brasil e a República Popular da China. O Brasil estabelece relações com a Rússia em 1828, durante o primeiro Reinado, na época em que ambos países eram impérios monárquicos. As relações diplomáticas têm seu início a partir desse período, não obstante com momentos de interrupção, como o não reconhecimento pelo Brasil da vitória bolchevique e a implementação do governo comunista em 1917. No caso da China, a relação entre Putin e o presidente chinês Xi Jinping simboliza o quanto a Eurásia se torna essencial para a sociedade internacional.
A China foi identificada como uma possível mediadora para a negociação entre Rússia e Ucrânia. No entanto, a ascensão econômica da China foi conduzida por uma política externa discreta, sem confrontos políticos. As abstenções da China na Assembleia Geral da ONU são um indicativo dessa visão de pouca interferência em temas que possam gerar rusgas entre Estados. Simultaneamente, o declínio da Rússia pós-Guerra Fria é acompanhado da ascensão da China desde a perspectiva econômica e geopolítica. Nesse contexto, é de se cogitar se interessaria para o líder chinês exercer essa mediação internacional.
As relações sino-soviéticas que se iniciam a partir dos anos 1980 orientam um novo arranjo nas relações internacionais, mesmo essa relação sendo considerada naquele período como “insegura” para a Rússia, como define Jeffrey Mankoff, em seu livro Russian Foreign Policy (“A política externa russa”, em português). Entretanto, essa inicial insegurança motiva a proximidade e a rapidez dessa relação bilateral, pois ambos os Estados compartilhavam um passado com enfrentamento de dificuldades e a semelhante aversão ao domínio ocidental.
A incipiente rivalidade pela liderança comunista global é logo redimensionada para o receio de exclusão da ordem mundial após a Guerra Fria. Mesmo com as divergências, o comércio e os investimentos crescem aceleradamente nas relações sino-soviéticas. Os dois países se uniram na oposição aos Estados Unidos na invasão do Iraque e também a favor de expulsão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) da Ásia Central. A China se tornou um “player” fundamental para a Rússia exercer suas aspirações geopolíticas.