O horizonte está escurecendo para os autores do estudo muito criticado sobre a hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19: a prestigiosa revista médica "The Lancet", que o publicou, tomou distância ao reconhecer em um aviso formal que "questões importantes" pairam sobre ele.
"The Lancet" deseja, portanto, "alertar os leitores para o fato de que questões científicas sérias foram trazidas à (sua) atenção" em relação a este estudo, diz a revista.
O alerta foi divulgado na terça-feira à noite sob a forma de uma "expression of concern" ("expressão de preocupação"), uma declaração formal usada por periódicos científicos para indicar que um estudo é potencialmente problemático.
Se uma "expression of concern" não é tão carregada de consequências quanto uma retirada total, lança dúvidas sobre sua natureza.
O estudo em questão conclui que a hidroxicloroquina não é benéfica para pacientes com COVID-19 hospitalizados e pode até ser prejudicial.
Teve um impacto mundial e grandes repercussões, pressionando a Organização Mundial da Saúde (OMS) a suspender os ensaios clínicos com hidroxicloroquina contra a COVID-19. Da mesma forma, a França decidiu proibir esse tratamento.
Publicado em 22 de maio no periódico "The Lancet, o estudo se baseia em dados de 96.000 pacientes hospitalizados entre dezembro e abril em 671 hospitais e compara a condição daqueles que receberam tratamento com os pacientes que não receberam.
Após a publicação, muitos pesquisadores expressaram dúvidas sobre o estudo, incluindo cientistas céticos sobre o benefício da hidroxicloroquina contra a COVID-19.
- Dados -
Em uma carta aberta publicada em 28 de maio, dezenas de cientistas em todo mundo observaram que uma análise minuciosa do estudo da Lancet levanta "preocupações metodológicas e sobre a integridade dos dados".
Eles elaboraram uma longa lista de pontos problemáticos, desde inconsistências nas doses administradas em certos países até questões éticas sobre a coleta de informações, incluindo a recusa dos autores a darem acesso a dados brutos.
Os dados são da Surgisphere, que se apresenta como uma empresa de análise de dados de saúde, com sede nos Estados Unidos.
Em seu comunicado à imprensa na terça-feira, "The Lancet" lembrou que "uma auditoria independente sobre a fonte e a validade dos dados foi solicitada por autores não afiliados ao Surgisphere e está em andamento, com resultados esperados em breve".
"Não basta, precisamos de uma avaliação independente real", reagiu no Twitter o pesquisador James Watson, um dos iniciadores da carta aberta.
"Existem dúvidas sobre a integridade do estudo da The Lancet. Em retrospecto, parece que os formuladores de políticas se apoiaram demais neste artigo", comentou o professor Stephen Evans, da London School of Hygiene and Tropical Medicine.
Antes da polêmica sobre o estudo, outros trabalhos em menor escala chegaram a uma mesma conclusão, sem que sua metodologia fosse criticada.
O estudo da "The Lancet" também foi atacado pelos defensores da hidroxicloroquina, geralmente com a palavra-chave #LancetGate nas redes sociais.
O principal deles é o pesquisador francês Didier Raoult.
"O castelo de cartas está em colapso", tuitou nesta quarta-feira sobre o alerta da revista, depois de já ter descrito o estudo como "confuso".
Os autores, dr. Mandeep Mehra e seus colegas, defendem seu estudo.
"Estamos orgulhosos de contribuir sobre a COVID-19" neste período de "incerteza", disse Sapan Desai, chefe da Surgisphere, à AFP em 29 de maio.
Esta empresa está no centro de todas as questões. Outra importante revista médica, "New England Journal of Medicine" (NEJM), também publicou na terça-feira (2) uma "expressão de preocupação" sobre um estudo da mesma equipe, realizado com bancos de dados da Surgisphere.
Este estudo não foi sobre hidroxicloroquina, mas sobre uma ligação entre a mortalidade por COVID-19 e doenças cardíacas.
Um especialista francês, o professor Gilbert Deray, vê na publicação desses avisos pela "The Lancet" e NEJM como um sinal de que os dois estudos estão "em processo de retração". Segundo ele, esse repúdio seria "um desastre", pois esses periódicos são "referências".
"Esses erros ilustram que o tempo científico deve ser desconectado do da mídia. A urgência da pandemia não justifica estudos ruins", afirmou ele no Twitter.
* AFP