JACARTA, Indonésia – Todos os anos, com a proximidade do mês sagrado islâmico do Ramadã, Surya Sahetapy e seus amigos mais próximos começavam a se sentir deprimidos. Eles não sabiam como ajudar mais indonésios a estudar o Alcorão, o livro sagrado do islã, o que pode parecer surpreendente na nação que abriga a maioria muçulmana mais populosa do mundo.
Tradicionalmente, muçulmanos de todo o planeta recitam o Alcorão inteiro durante o mês do Ramadã, que, na Indonésia, começou em 5 de maio. Estudar todos os 114 capítulos, conhecidos como suras, pode levar anos, e muitos aqui aprendem as melódicas recitações árabes – assim como as traduções e interpretações indonésias – por meio de gravações de áudio.
No entanto, Surya, de 25 anos, e seus amigos tiveram de enfrentar um desafio excepcional na hora de conhecer os textos sagrados: eles são surdos. "Meus amigos surdos e eu ficávamos tristes porque não tínhamos como ajudar outros na mesma situação a ter acesso ao islamismo", explicou por meio de um intérprete da língua de sinais.
Tudo isso mudou no ano passado, quando Surya se uniu a uma organização islâmica local para criar um projeto com o propósito de produzir vídeos com as 114 suras traduzidas para a língua dos sinais. O primeiro foi ao ar no YouTube no ano passado, antes do início do Ramadã.
O trabalho tem andado devagar. Para o Ramadã deste ano, o Projeto Alcorão da Indonésia desenvolveu mais quatro vídeos com suras e um com o azan, o chamado que convoca os muçulmanos para a reza.
Embora muitos muçulmanos surdos na Indonésia consigam ler e memorizar algumas escrituras, eles têm pouco acesso a estudiosos islâmicos capazes de se comunicar com eles.
Por isso, para ajudar os muçulmanos surdos a não apenas memorizar os versos como também a entender seu significado, o grupo planeja lançar um jogo de tabuleiro educativo, tratando de questões básicas do islã, e uma coleção de 10 DVDs, explicando algumas preces na língua de sinais.
"Está mudando tudo. Os vídeos também trazem uma mensagem própria: se você quer que os indonésios surdos conheçam o islamismo, eles precisam aprender a língua de sinais. O islã não se limita ao que você lê, mas é muito mais o que você compreende", declarou Surya sobre o projeto.
A ideia de um Alcorão na língua de sinais começou em 2017, quando Surya conheceu Archie Fitrah Wirija, fundador e produtor executivo do Projeto Alcorão da Indonésia.
A associação sem fins lucrativos de Wirija já estava tentando encontrar uma maneira de atrair o interesse dos mais jovens para o Alcorão ao produzir versões em áudio do livro sagrado em árabe, indonésio e inglês, com as vozes de cantores e atores populares do país. "Era como se o Alcorão não fosse descolado o suficiente", disse Wirija, justificando a decisão de usar celebridades e criar um aplicativo do Alcorão para celulares.
O projeto com a língua de sinais se desenvolveu com a ajuda de Galuh Sukmara Soejanto, professora indonésia surda e ativista dos direitos de pessoas com deficiências. Ela instruiu Surya sobre as nuanças de traduzir o Alcorão para a língua de sinais, e o progresso dele foi monitorado por uma organização de auxílio a deficientes auditivos localizada em Jidá, na Arábia Saudita.
O projeto do Alcorão se transformou em um dos escassos recursos educacionais a que os indonésios surdos têm acesso. Até 2015, havia 2,9 milhões de cidadãos com deficiência auditiva no país, segundo informações da Agência Central de Estatísticas. Contudo, ativistas acreditam que o número real é muito mais alto.
Há poucas opções de educação especial para as crianças surdas e acesso limitado a serviços públicos para os adultos, especialmente nas áreas rurais mais remotas do país. A língua de sinais indonésia somente foi reconhecida pelo Ministério da Cultura e Educação em 2016, e há apenas um parco número de autoridades governamentais capazes de se comunicar por meio dela.
Em 2013, Galuh abriu uma pequena escola e um programa de ensino domiciliar para crianças surdas na província de Java Ocidental, perto de Jacarta, a capital da Indonésia. Grande parte dos professores e da equipe de apoio são deficientes auditivos. Ela contou que as escolas públicas do país não incluem usuários da língua de sinais; em vez disso, colocam os alunos surdos em salas de aula tradicionais, onde eles precisam aprender a fazer leitura labial se quiserem receber educação.
"A língua de sinais é o incentivo primordial usado para desenvolver habilidades de comunicação, incluindo a expressão individual. A partir de experiências pessoais relacionadas à comunicação e amparados por muita pesquisa científica, estamos seguros de que essa forma de linguagem é um dos fatores mais importantes para o desenvolvimento das habilidades de comunicação, assim como para a base da educação em geral", explicou Galuh por e-mail.
Eu era obrigado a viver como uma pessoa que tinha audição normal. E, mesmo hoje em dia, os pais não querem ver os filhos fazendo sinais, mas sim falando.
SURYA SAHETAPY
membro do Projeto Alcorão da Indonésia
Na família de Surya há outros casos de surdez. Uma irmã mais velha e um tio, também deficientes auditivos, o apresentaram à língua de sinais quando ele ainda era novo. "Mas, quando chegou a hora de estudar o islã em sala de aula, comecei a chorar, porque não entendia", disse Surya, lembrando-se de que precisava ler os lábios da professora no ensino fundamental. "Eu era obrigado a viver como uma pessoa que tinha audição normal. E, mesmo hoje em dia, os pais não querem ver os filhos fazendo sinais, mas sim falando."
As coisas estão mudando, embora lentamente. Um pequeno número de mesquitas pelo país começou a oferecer intérpretes da língua de sinais. E muitas emissoras nacionais de televisão agora transmitem noticiários e programas religiosos com tradução para deficientes auditivos.
"Isso mostra às pessoas que temos o direito de usar a língua de sinais. Queremos mudar o estigma de 'Se não pode falar, você é diferente'", concluiu Surya.
Por Joe Cochrane