BUENOS AIRES (FOLHAPRESS) - A terceira e última entrega de documentos oficiais americanos sobre a mais recente ditadura argentina (1976-1983) revela detalhes do funcionamento da Operação Condor (formada pelos governos militares do Cone Sul nos anos 1970 para a troca de inteligência e perseguição de inimigos do regime), cuja sede operacional foi Buenos Aires, e como foram assassinados pela repressão local dezenas dos até hoje considerados "desaparecidos".
A entrega de documentos responde a um acordo feito entre o presidente Mauricio Macri e o então mandatário dos EUA, Barack Obama, durante sua visita à Argentina, em 2016.
Seu sucessor, Donald Trump, manteve o compromisso e entregou, na sexta-feira, a última leva de arquivos, que consiste em 47 mil páginas, ainda não disponibilizadas à consulta aberta, mas cujo conteúdo já começou a ser divulgado.
Trata-se de um conjunto de correspondências entre a embaixada norte-americana na Argentina e seus adidos militares no país a autoridades norte-americanas, além de informes realizados pela CIA e o FBI com base nessas informações.
"Ainda não conhecemos todo o conteúdo, mas os documentos são importantíssimos, pois podem ajudar a alimentar os julgamentos de crimes de lesa humanidade que ainda estão abertos e acrescentar aos que já foram encerrados. Além disso, podem colocar ponto final a algumas das trágicas histórias de desaparecidos cujo fim ainda não conhecemos", diz à reportagem Gastón Chillier, do Cels (Centro de Estudos Legais e Sociais), a principal organização de defesa dos direitos humanos da Argentina.
Sobre a Operação Condor, há mais informações sobre a relação dos líderes militares argentinos com os uruguaios e chilenos. Brasil e Bolívia aparecem com menor destaque nessa documentação.
Confirma-se, porém, que os EUA não apenas acompanharam as ações da Condor como auxiliaram em termos de inteligência e de cooperação, inclusive levando agentes sul-americanos para treinamento em território dos EUA.
Os documentos detalham as reuniões em que se tomavam as decisões sobre quem seriam as vítimas de cada operação. Curiosamente, a escolha se dava de modo "democrático". Ou seja, os líderes militares dos países votavam quais perseguidos políticos tinham de ser executados primeiro, onde e de que forma.
Há informações precisas sobre o modo como cada agente deveria atuar, da vestimenta ao veículo que utilizaria. Incluía os custos para comprar as roupas e os gastos das diárias. Em alguns casos, eram contratados assassinos de aluguel, a quem pagavam US$ 3.500 por perseguir e matar uma pessoa.
O centro de operações da Operação Condor funcionava diariamente em Buenos Aires entre 9h30 e 19h30 e era integrado por oficiais dos países diretamente envolvidos (Argentina, Chile, Brasil, Bolívia, Peru, Paraguai, Uruguai).
O custo da operação como um todo era compartilhado entre os países membros, que deveriam aportar US$ 10 mil ao entrar, depois uma anuidade.
A colaboração dos EUA, porém, não foi constante. Como já havia sido revelado no pacote de documentos entregues antes deste, o então secretário de Estado, Henry Kissinger, enquanto esteve no cargo (1973-1977) era um apoiador efusivo da Operação Condor.
Ao governo argentino, inclusive, Kissinger teria dado o aval dos EUA com relação à execução dos opositores (membros das guerrilhas montoneros, ERP ou militantes de outras agrupações), acrescentando apenas que "o que tenham de fazer, façam, mas quanto mais rápido, melhor".
A posição dos EUA com relação às ditaduras sul-americanas, porém, teve uma mudança radical quando o democrata Jimmy Carter assumiu o poder, em 1977.
Os EUA, então, passaram a pressionar de modo contrário, pelo fim da repressão, e a colaborar nas denúncias dos abusos de direitos humanos cometidos pelos regimes militares da região.
Quando aceitou entregar os documentos classificados, Obama disse que era essa a atitude dos EUA que ele gostaria de reivindicar, e não a dos EUA que apoiaram os generais.
Quanto aos casos dos desaparecidos que os novos documentos dão por mortos em operações dos grupos de tarefa argentinos ou da Operação Condor, trata-se de "dezenas". Isso pode mudar o rumo e mesmo permitir encontrar os culpados e iniciar novos julgamentos. A lista completa, porém, ainda não foi divulgada.
Alguns relatos já conhecidos são devastadores. Conta-se, por exemplo, como foi o sequestro dos cubanos Jesús Cejas Arias e Crescencio Nicomedes Galañena Hernández, que teriam sido sequestrados e levados a um centro de detenção clandestina, onde foram torturados até a morte. Depois, seus corpos teriam sido envoltos em cimento e, depois, jogados no rio Paraná. Até hoje não foram encontrados.
Há outro que relata o sequestro de uma psicóloga argentina, que era cadeirante, e que foi torturada porque atendia a suspeitos de participar de atividades de subversão. Os repressores exigiram que ela entregasse seus nomes.
Para a promotora María Ángeles Ramos, "os documentos vão ajudar a vários processos em andamento, e mesmo os já concluídos, pois o mais importante, ao final, é conhecer a verdade sobre aqueles anos", afirmou.
Até agora, a Argentina já realizou 3.000 processos contra repressores, havendo mais de 800 deles condenados e 200 aguardando decisões.
Já os números da repressão são motivo de disputa. Com base em documentos e estudos mais recentes, historiadores acreditam que a cifra mais correta estaria em torno dos 20 mil desaparecidos. Organizações de direitos humanos dizem que foram mais de 30 mil.
Os documentos dos EUA talvez ajudem também a dirimir essa dúvida, que também polariza opiniões na Argentina.