— As balas passavam rasgando por cima da cabeça — disse com o rosto coberto um dos mais de 200 estudantes resgatados de uma igreja atacada por forças governamentais, no mais recente episódio da escalada de violência que já deixou mais de 270 mortos na Nicarágua.
Os paramilitares estavam a 50 metros do local do ataque.
— Nos atacaram sem piedade e fizeram duas tentativas de queimar a igreja com a gente dentro — relatou o jovem à AFP, identificando-se apenas como "El Negro".
Depois de iniciado o ataque ao meio-dia de sexta-feira (13) por paramilitares encapuzados, os estudantes entrincheirados na Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua (Unan) buscaram abrigo no templo da Divina Misericórdia, próxima ao campus no conjunto residencial de Villa Fontana, ao sudeste de Manágua, contou o jovem.
Foram quase 20 horas de horror vividas por cerca de 200 estudantes desalojados da Unan, uma operação que deixou dois mortos e 14 feridos, segundo o cardeal Leopoldo Brenes, que liderou uma missão para tirar os jovens que estavam no templo.
— Não respeitaram a igreja e a imagem da Virgem, o Cristo. Quebraram tudo, as paredes ficaram marcadas pelos disparos — acrescentou o estudante, com a voz embargada, após viver a experiência do ataque com armas de grosso calibre.
Quase na madrugada de sábado, correndo o risco de novos tiros, o universitário que procurava ansioso pela mãe que não via há dois meses, contou que eles saíram para apagar o fogo.
— Estavam queimando a igreja com todos dentro — completou.
"Muita impotência"
Os momentos de tensão duraram cerca de 20 horas. Um estudante afirmou que os ataques foram feitos com fuzis AK-47, Dragunov e granadas.
— Não senti medo, mas sim muita impotência. Nós tínhamos apenas morteiros artesanais e as barricadas — contou.
As trincheiras de pedras e tijolos pouco serviram para protegê-los, pulverizados com os disparos feitos não muito distante, relatou. O estudante disse, ainda, que o ataque foi tão brutal que se sentiu uma forte explosão.
— Lançaram uma granada que pegou no muro do portão e por ali entraram na Unan — acrescentou.
— Mataram Gerald Velázquez. Foi um tiro na cabeça. Não pudemos fazer nada e o perdemos — disse o jovem de 22 anos, que pediu para não ser identificado.
Ele garantiu que continuará na luta cívica até a saída do presidente Daniel Ortega do governo.
Outra estudante, com a perna enfaixada e com dificuldade para andar, contou que, à meia-noite, cortaram a luz e começaram a atirar na cabeça.
— Vi um dos meus companheiros (Velázquez) cair. Como era noite e estava escuro, nos demos conta do outro companheiro morto.
Os estudantes da Unan, a mais importante universidade pública do país, tomaram o local quase um mês depois de iniciados os protestos em 18 de abril. A universidade era o último reduto nas mãos dos estudantes, após deixarem por decisão própria a Universidade Politécnica (UPOLI) diante do constante assédio da polícia e de grupos de choque ligados ao governo. Essas forças tentavam eliminar esse foco de resistência no leste de Manágua.
Reencontro emocionante
Depois do cerco brutal, os jovens conseguiram sair na manhã de sábado da igreja, por mediação das autoridades católicas, à frente da qual estava o cardeal Brenes e membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos.
Dois ônibus cheios de alunos ingressaram nos prédios da catedral de Manágua, junto com ambulâncias da Cruz Vermelha com alguns feridos, onde eram esperados por centenas de familiares e por amigos entre aplausos, lágrimas e gritos de justiça.
O pai de Gerald Velásquez, um dos dois estudantes mortos, chegou à catedral em busca de informação para a entrega do corpo do filho, enquanto recebia a solidariedade da população no local.