Os manifestantes antigovernamentais entrincheirados na cidade nicaraguense de Masaya não sabem ao certo quem está disparando contra eles, mas seja quem for, essas pessoas estão bem treinadas e disparam para matar.
O terror dominou essa cidade durante todo o fim de semana. Os residentes, armados com morteiros caseiros, lutaram contra a polícia e os paramilitares, que acusam de saquear e incendiar a cidade.
Com paralelepípedos, móveis, chapas de metal e qualquer outra coisa ao alcance, construíram barricadas em quase todas as ruas dessa cidade de pouco mais de 100.000 habitantes.
Até agora tiveram sucesso nos combates contra as forças de segurança do presidente Daniel Ortega desde que começaram os protestos contra o governo, em 18 de abril. Mas não podem fazer muito em relação aos franco-atiradores que, segundo dizem, atacam de posições na área do centro da cidade.
"Atiraram em um vizinho meu no peito nessa manhã", disse no último sábado Jonhatan José, de 47 anos, em entrevista à AFP no mercado de artesãos, agora incendiado.
"Foi um franco-atirador, pelo tipo de buraco. Grande.", declarou.
- Caos em Manágua -
Do outro lado do mercado, que os residentes acusam a polícia de choque de ter incendiado, Armán García, manifestante que usa um pedaço de tecido vermelho como máscara, diz que "não há nada o que fazer" se você vê um franco-atirador.
"São pessoas preparadas, especializadas, com tiros letais. São na cabeça, abdômen, tórax", diz García, de 37 anos.
Na capital, Manágua, a 40 minutos de carro de Masaya, há mais informações, respaldadas por vídeos, de franco-atiradores vestidos de civis que matam manifestantes.
São mostradas até provas de que esses atiradores se posicionam no Estádio Nacional de Beisebol, além de outros prédios. Teriam disparado dali contra a multidão durante a manifestação da última quarta-feira, liderada pelas mães dos mortos pela violência, em que morreram 16 pessoas.
Desde que começaram os protestos, em abril, pelo menos 110 pessoas morreram, segundo o Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (Cenidh).
A Anistia Internacional (AI) denunciou que as autoridades nicaraguenses usam grupos paramilitares para reprimir os manifestantes.
O presidente Ortega negou que tanto a polícia quanto o exército tenham disparado contra civis.
Médicos que trabalham na Nicarágua denunciaram a grupos de Direitos Humanos que muitas feridas vistas nas vítimas coincidem com as causadas pelo rifle Dragunov do franco-atirador, segundo informação do jornal local La Prensa.
- Restos da Guerra Fria -
Desenvolvido na ex-União Soviética, o Dragunov chegou à Nicarágua em larga escala depois da guerrilha sandinista de Ortega instalar um governo comunista após derrubar o ditador Anastasio Somoza em 1979.
Se transformou na arma das unidades irregulares do exército e das forças contrainsurgência que rapidamente se viram envolvidas em outra guerra contra os Contras, grupos rebeldes financiados pelos Estados Unidos visto como uma ameaça à chegada dos comunistas ao poder em uma zona que considerava seu quintal.
Durante a década de 1980 muitas pessoas foram treinadas para utilizar o rifle Dragunov, segundo o comandante Roberto Samcam, ex-guerrilheiro sandinista que comandava unidades de contrainsurgência.
Transformado hoje em crítico de Ortega, Samcam afirma que mesmo que o Dragunov seja um rifle de franco-atirador, quase qualquer soldado pode usar a arma.
"Requer uma perícia especial se for utilizado para atingir um alvo ao longe e em um momento que esteja claramente definido. Mas se você vai atingir alguém em uma manifestação de 100.000 pessoas, não precisa de tanta perícia", disse em entrevista à AFP.
"A mira ajuda a localizar e apontar. A posição vantajosa que você tem, com uma arma que pode alcançar uma distância de até 800 metros, para ter um alvo efetivo, permite ter a comodidade para poder fazer o disparo", acrescentou.
Quando Ortega perdeu o poder nas urnas em 1990, muitos de seus antigos camaradas guerrilheiros abandonaram o exército e levaram suas armas com eles, temerosos de receber ataques dos Contras, ainda que permanecessem leais ao presidente.
O presidente voltou ao poder nas eleições de 2006 e cumpre o terceiro mandato consecutivo, acusado de manipular os tribunais e da autoridade eleitoral para se manter no poder poe tempo indefinido.
- "Exterminar as pragas" -
Na véspera da marcha das mães de quarta-feira passada, chamou esse ex-soldados a "defender a pátria" e "exterminar as pragas" em vários vídeos difundidos nas redes sociais.
"Pragas" é o termo usado pela esposa de Ortega e vice-presidente do país, Rosario Murillo, para se referir aos manifestantes.
As mensagens, segundo Samcam, foram uma chamada aos ex-soldados para que ajudem a reprimir os protestos.
"Essas forças paramilitares tem sido organizadas e armadas pelo governo, e é responsabilidade de Daniel Ortega", afirmou.
Ironicamente, nessa luta há um paralelo com a ditadura que Ortega derrubou: Somoza também foi acusado de usar franco-atiradores para assassinar sua população, e os manifestantes chegaram a cantar: "Daniel, Somoza, são a mesma coisa".
Estão "fazendo exatamente o mesmo que Somoza fazia, até coisas piores que Somoza", disse uma manifestante de 25 anos, que pediu anonimato.
"Se transformou no ditador contra o qual tanto lutou", acrescentou sobre Ortega.
* AFP