Cheguei a Kosovo pela primeira vez há quase vinte anos. Em 1999, a OTAN interveio pelo lado dos rebeldes albaneses contra as forças da Sérvia de Slobodan Milosevic. Eu estava ali para cobrir a guerra.
Com os bombardeios da organização ocidental, as forças sérvias iniciaram uma campanha de limpeza étnica que desalojou quase um milhão de albaneses kosovares, predominantemente muçulmanos. A Sérvia, de maioria cristã ortodoxa, não demorou a capitular e retirar suas forças. Depois disso, Kosovo passou nove anos sob o controle da ONU, ou seja, em um limbo supervisionado internacionalmente.
Em 17 de fevereiro fez dez anos que a região montanhosa, sem saída para o mar e com mais de dois milhões de habitantes declarou sua independência da Sérvia; entretanto, longe de acabar com os problemas, a autonomia parece ter trazido um novo lote de complicações.
Voltei a Kosovo várias vezes desde aquela primeira vez, no final de 1998, para ficar duas semanas; aliás, em fevereiro de 1999, instalei-me na capital, Pristina, onde permaneci até 2005; desde então, volto para lá pelo menos uma vez por ano, às vezes mais.
Por ter feito a cobertura do conflito, até hoje não consigo deixar de ver o povo e a paisagem sob o prisma da guerra. Passeando pelo interior, ainda me lembro da localização dos postos de verificação, as filas de refugiados, os desalojados em busca de segurança, as colunas de fumaça preta que subia dos vilarejos queimados.
Muita coisa mudou para a terra e para o povo. Estive lá no fim do ano passado e fiquei chocado ao ver como o otimismo incurável dos kosovares cedeu espaço à desilusão. O povo parece achacado pela resignação e o desprezo pela corrupção do governo.
"Juro por Deus que se não fosse por aqueles que perderam a vida na guerra, eu diria que daria mais certo voltar ao que era antes. A vida era melhor, a gente tinha mais oportunidades", disse um homem.
Tal sugestão é uma verdadeira heresia – tanto que não quis dar o nome, com medo de dar a impressão de não parecer patriota. O medo, aliás, ainda é um fato na vida de muita gente.
Dias antes da minha chegada, Oliver Ivanovic, um político sérvio moderado, foi morto a tiros nas ruas de Mitrovica.
A cidade continua basicamente congelada e dividida. A parte sérvia vive tomada pelo pavor. Um morador descreveu os policiais como "flores", ou seja, só para decoração.
Eu fotografara Ivanovic muitas vezes. Durante uma época, ele liderara um temido grupo paramilitar que cuidava das pontes sobre o rio Ibar, dividindo as áreas albanesa e sérvia.
Em 2003, participei da reunião em que o diplomata norte-americano Richard C. Holbrooke disse a Ivanovic que, se ele mantivesse a proposta linha-dura, "acordaria um dia, olharia no espelho e perceberia que o trem da história o tinha deixado para trás".
Mais tarde, o sérvio se transformou em um político mais pragmático. Antes de morrer, tinha acusado a máfia local de controlar a cidade. Muitos moradores acreditam que o grupo trabalha em nome da capital sérvia, Belgrado, e especulam se Mitrovica pode chegar a ser dividida formalmente.
No resto de Kosovo, as comunidades albanesas e sérvias são mais cooperativas, mas o fato é que as marcas psicológicas estão por toda parte, mesmo que a paisagem se transforme, com rodovias impecáveis e postos de gasolina e shopping centers gigantes.
A estrada que sai da divisa com a Albânia, atravessa Gjakova e entra em Prizren, por si só já é uma cicatriz, um lembrete amargo dos massacres de guerra.
Ela acompanha a fronteira montanhosa e era usada como ponto de travessia pelos rebeldes do Exército de Libertação do Kosovo durante o conflito; os vilarejos que foram divididos com sua passagem sofreram muito.
Passei por Meja, a aldeia albanesa católica que foi palco do pior massacre da guerra, onde 372 homens e meninos foram tirados à força das colunas de refugiados e dos vilarejos vizinhos e mortos a tiros no meio da estrada.
Seus corpos continuavam desaparecidos quando o conflito acabou; muitos foram encontrados anos depois, em uma vala comum do centro de treinamento da polícia especial sérvia em Batajnica, na periferia de Belgrado.
Por muitos anos o local da carnificina foi marcado apenas por túmulos simples, muçulmanos e cristãos misturados; hoje, parece que um memorial mais permanente está sendo erguido, com lápides de mármore preto todas iguais.
A mesma estrada leva a Gjakova, reconstruída depois de ter quase desaparecido, inclusive o bazar da era otomana. A seguir, vem Xerxe e Krushe, vilas alquebradas onde a maioria dos homens foi executada.
Segundo um relatório de 2017 preparado pelo Comitê Internacional pelas Pessoas Desaparecidas, 4.500 indivíduos sumiram durante a guerra, sendo que o paradeiro de mais de 1.600 nunca foi estabelecido.
Em Gjakova, visitei duas mulheres: Nusrete Kumnova e Ferdonije Qerkezi. O filho único da primeira foi levado durante o conflito e sumiu; Qerkezi perdeu o marido e quatro filhos.
Os restos mortais de dois deles foram encontrados e puderam ser enterrados, mas o do esposo e dos outros dois filhos continuam desaparecidos.
Para elas, o tempo não passou. Qerkezi transformou a casa em um museu dedicado à memória da família.
No andar de cima, os quartos continuam do jeito que deixaram. Brinquedos, bolas de futebol e roupas forma cuidadosamente embrulhados em plástico.
Em outro cômodo, redomas protegem as roupas com marcas de balas que os dois filhos cujos corpos foram recuperados vestiam – um lembrete terrível de como suas vidas foram ceifadas.
Ela evita responder quando pergunto como se sente em relação ao aniversário da independência de Kosovo, soltando apenas com um "Ah, nem pergunte!".
Embora a decepção com a situação política e econômica seja enorme, ainda há alguns sinais de otimismo. Artística e culturalmente, Kosovo está bombando.
Rita Ora, Dua Lipa e Era Istrefi, todos nascidos ali, têm presença garantida nas paradas de sucesso; as boates, bares e casas de espetáculos de Pristina, onde há poucas restrições étnicas, vivem lotados.
Petrit Halilaj, um jovem artista, ganhou o prêmio especial do júri da Bienal de Veneza no ano passado.
Por um estranho capricho do destino, eu o fotografei quando era um refugiado de onze anos na fila de um ponto de distribuição de alimentos de Kukes, na Albânia. As experiências que viveu na época continuam a inspirar grande parte de seu trabalho.
No meu último dia em Kosovo, chegou a notícia de que o pedido de visto de entrada do primeiro-ministro Ramush Haradinaj para o Reino Unido tinha sido negado. A reação foi a de constrangimento geral, já que antes tinha sido impedido de viajar para os EUA.
Desde a declaração de independência, Kosovo foi reconhecido por apenas 111 dos 193 países membros da ONU; peças-chave como a Rússia, a China, a Sérvia e cinco nações da UE não o fizeram.
Assim, Kosovo continua sendo o único país europeu sem liberação de visto, o que significa que é praticamente impossível para seus cidadãos viajarem. Tem também a população mais jovem do continente, segundo o Banco Mundial: ali, 70 por cento têm menos de 35 anos.
"Enquanto continuarmos enfurnados neste gueto, teremos problemas. É preciso que os jovens saiam, estudem fora, e voltem trazendo sabedoria", resume Arben Berisha, presidente da torcida uniformizada do Arsenal em Kosovo.
Por Andrew Testa