Quando o G20 foi erguido como muro de arrimo após o tsunami que varreu as economias asiáticas no final dos anos 1990, havia ampla simpatia pela ideia de um fórum que reunisse países ricos, Estados surgidos da queda do colosso soviético (Rússia incluída) e o que ainda era chamado de "mundo em desenvolvimento". Vivia-se a era de ouro da globalização econômico-financeira, e poucos sabiam quem era Osama bin Laden. Congregar representantes dos 19 maiores produtos internos brutos mais a União Europeia (UE) parecia ser um indício de que a velha ideia de "governança global" era, afinal, mais do que uma fantasia de impérios havia muito extintos.
O século 20 tinha reabilitado e dado nova feição ao projeto de "governar o mundo", adicionando-lhe ingredientes que se revelariam críticos. O primeiro e mais importante tinha sido a noção de direito nacional (que não necessariamente deveria ser entendido como direito de nacionalidade). Essa tese derivou do colapso de cinco grandes impérios multinacionais durante e depois da I Guerra Mundial, para o qual haviam contribuído as revoluções coloniais e a onda independentista do século anterior.
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Uma das condições para prevenir guerras – pelo menos para um dos vencedores de 1918, os Estados Unidos – seria reconhecer o direito de toda e qualquer nação à soberania. A Liga das Nações, produto desse esquema, teve vida curta, de 1920 ao início da II Guerra. Com a derrota do Eixo, a experiência foi revivida na Organização das Nações Unidas (ONU), que sobrevive a duras penas.
A Liga e a ONU jamais pretenderam disfarçar a assimetria de poder entre seus integrantes. No caso da segunda, as cartas ficaram nas mãos dos cinco vencedores de 1945 (Estados Unidos, União Soviética, Grã-Bretanha, França e China), que ocupam assentos permanentes no cada vez mais enfraquecido Conselho de Segurança, secundados por outros 10 membros rotativos. O fim da União Soviética, a consolidação da UE e a globalização obrigaram os participantes a refazer o jogo. A reemergência da Alemanha (inicialmente a Ocidental e, a partir de 1990, reunificada), da Itália e do Japão foi absorvida no desenho informal do poder por meio do G7, que congregava os sete países mais ricos. Desde 1997, a Rússia incorporou-se formalmente ao clube, rebatizado de G8. Dois anos depois, o G20 foi institucionalizado.
Em 18 anos de atividade, o Clube dos 20 assumiu uma agenda centrada em políticas econômicas e de desenvolvimento, mas que, na prática, cobre uma infinidade de temas, da mudança climática a questões de gênero, pesquisa científica e combate à corrupção. O maior abalo ocorreu no final da década passada, quando a crise financeira de 2008 colocou as economias americana e, em seguida, europeia na lona. Com o mundo emergente poupado dos efeitos mais duros do colapso em razão do boom das commodities, China, Rússia, Índia, Brasil e África do Sul viveram sua era de maior prestígio diante dos outros sócios.
A bonança, porém, duraria pouco.
Uma década de crescimento global tíbio, combinada com a recessão em parte do mundo emergente e a crise na Ucrânia, disseminou ceticismo em relação à capacidade de resposta do G20. O golpe de misericórdia foi a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, com uma política mais isolacionista e focada em questões domésticas do que os antecessores. Trump não tem talento nem disposição para liderar o grupo. Atitude divisiva em relação a antigos aliados, como a UE em geral e a Alemanha em particular, ambiguidade em relação à Rússia e negacionismo diante do aquecimento global são as principais manchas na estampa trumpiana.
Em circunstâncias diferentes, os europeus poderiam aspirar a preencher o vácuo de liderança deixado por Trump. Mas a UE dificilmente conseguirá dar conta de desafios diplomáticos se não resolver sua paralisante crise interna, na qual a ruptura do Reino Unido com o restante do bloco continua sendo o principal item. Nos últimos meses, a China exercitou-se no papel de consciência do capitalismo global ao defender a continuidade da globalização – tema de um discurso hoje célebre do presidente Xi Jinping no Fórum Econômico Mundial de Davos, Suíça, em janeiro – e o Acordo de Paris contra a mudança climática. Mas os chineses ainda são os novos garotos no quarteirão, e sua influência precisará de tempo para se consolidar.
Um pouco da crise de identidade do G20 reflete-se no fato de que raras vezes uma cúpula reuniu seleção tão odiada de líderes globais como em Hamburgo. As tradicionais manifestações contra os poderosos do planeta em torno de causas planetárias – defesa dos oceanos, proteção às focas, direitos dos lêmures – foram reforçadas por todo tipo de bandeiras nacionais. Americanos contra o desmantelamento do Obamacare? Estavam em casa. Ativistas exigindo libertação de repórteres na Turquia? Presentes. Dissidentes russos pedindo fim da perseguição ao oposicionista Alexei Navalny? Aos montes. Brasileiros gritando "Fora Temer"? Não podiam faltar (ironicamente, este ano o Brasil divide com a Alemanha a presidência do grupo de trabalho do G20 contra a corrupção).
Nos dois dias de cúpula, foi impossível encontrar um único tópico em torno do qual os participantes possam ou queiram atuar de forma coordenada. Dois anos antes do 20º aniversário, o G20 se parece com um aparelho doméstico de fitness em desuso, cuja única finalidade é servir de cabide para peças usadas de vestuário. Em algum momento, será preciso lavar a roupa suja.