A Venezuela está no meio do caminho entre o plebiscito em que a oposição reuniu 7,6 milhões de eleitores repudiando o presidente Nicolás Maduro, no último dia 16, e a eleição para a assembleia constituinte do próximo dia 30. A constituinte foi convocada pelo governo para mudar as regras do jogo em que tinha derrota popular dada como certa.
O impasse institucional se desenha tendo como pano de fundo o caos socioeconômico de filas compostas por pessoas famélicas dando voltas em quarteirões de mercados, centenas de presos políticos, desabastecimento em 80% da cesta básica, violência assemelhada à de países em guerra e inflação anual superior a 700%.
A curiosidade a respeito dos dois eventos é que o primeiro, promovido pela oposição, tem a bênção da população e carece de apoio institucional, já que o Conselho Nacional Eleitoral e o Tribunal Superior de Justiça são dominados pelo governo. O segundo, por outro lado, conta com o apoio desses organismos oficiais, mas experimenta a rejeição de um índice próximo a 80% dos venezuelanos, segundo o instituto Datanálisis (Maduro tem 20% de apoio).
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– É um absurdo que o governo se empenhe por uma constituinte rechaçada pela maioria da população, que deve levar o país inclusive a um drama internacional – diz Luis Vicente León, diretor do Datanálisis, referindo-se a ameaças feitas pelos Estados Unidos e pela União Europeia, de impor boicotes à Venezuela caso Maduro mantenha seu cronograma. E completa:
– Enquanto esse processo constituinte é realizado, são suspensas as eleições regionais, locais e presidenciais em 2017 e 2018. Com isso, o governo pretende evitar seu maior medo, que são as eleições.
Os 7,6 milhões de eleitores, que aderiram espontaneamente ao plebiscito feito extra-oficialmente e com votação facultativa, fazem parte do eleitorado de 20 milhões em uma população de 31 milhões.
O cientista político Sergio Fausto acredita que a ânsia de Maduro por mudar as regras do jogo e evitar eleições se deve ao temor de vingança que viria em governos de oponentes. O receio do presidente venezuelano deriva do alto grau de polarização local e de fatos como as condenações de ex-presidentes em países vizinhos.
– O governo se tornou incapaz de desempenhar as funções mais básicas, a começar pela segurança, passando pela saúde. Tudo é dramático no país. Ainda não há uma guerra civil aberta, mas o nível de violência do governo sobre os manifestantes é crescente, e isso é a expressão de um regime que foi muito longe na apropriação privada de recursos públicos para as lideranças políticas. A transição para algo melhor é vista com muito temor – diz Fausto.
Os analistas fazem coro ao interpretar a constituinte como a vontade de adiar eleições indefinidamente. Provisoriamente, o governo já conseguiu cancelar eleições para governos estaduais em que as pesquisas indicavam vitória acachapante da oposição (nas legislativas do final de 2015, os opositores já venceram). Também contornou e barrou a realização de um referendo revogatório do mandato, previsto na atual constituição, que teria estabelecido um "recall" de metade do mandato.
Pensando em se impor na eleição constituinte, Maduro criou um peculiar sistema eleitoral.
– Criaram um sistema eleitoral no qual não há maneira de que as forças democráticas terem maioria, mesmo que o governo tenha menos votos – critica o constitucionalista venezuelano José Apitz.
E como funciona esse sistema sui generis? Serão eleitos 545 legisladores constituintes, mas 181 deles serão eleitos por grupos de trabalhadores e estudantes filiados a associações, conselhos, ministérios ou empresas públicas. O governo tem controle direto desses setores, e os registros desses grupos de eleitores não são divulgados, dando margem a suspeitas de que os votos sejam manipulados. Os outros 364 constituintes serão eleitos de forma indireta pelo resto da população.
Os habitantes de cada município escolherão um deputado (capitais escolherão dois deputados). Com isso, municípios pequenos podem eleger o mesmo número de representantes que municípios bem mais populosos. Detalhe: as zonas mais populosas são as urbanas, nas quais a oposição atinge 80% de apoio.
E, para assegurar mais ainda a supremacia chavista, mesmo nas grandes cidades (com apoio tradicionalmente majoritário à oposição), serão eleitos dois constituintes, necessariamente um deles chavista, porque serão eleitos proporcionalmente – para eleger os dois candidatos, a oposição necessitaria ter o dobro de votos do chavismo, algo tido pelos analistas como inviável.
Características da votação
1 Sem consulta via referendo, Maduro fará uma constituinte desprezando a lógica do sufrágio direto, universal e secreto.
2 As motivações expressas por Maduro são de "alcançar a paz", evitar "guerra civil", e "dar poder ao povo".
3 A constituinte será um "suprapoder" e deve suspender as eleições já adiadas e as presidenciais de 2018.
Dúvidas quanto à legitimidade
O cientista político Héctor Briceño resume o sistema de votação para a constituinte dizendo que "onde ganha a oposição, haverá empate, e onde o governo ganha a vitória será total, com os dois legisladores garantidos".
No linguajar do governo, a constituinte é definida com as seguintes palavras, que lhe emprestam verniz democrático: "operária", "patriótica", "popular" e "cidadã".
O Ministério Público, liderado pela chavista dissidente Luisa Ortega, contesta o caráter democrático do processo. Ardorosa seguidora de Hugo Chávez (1999-2013) e defensora da Constituição que ele criou em 1999, Luisa diz que, para legitimar uma constituinte, seria necessária a realização de uma prévia consulta popular. Maduro invocou o artigo 347 da Constituição venezuelana, que determina: "O povo da Venezuela é o depositário do Poder Constituinte originário. Em exercício deste poder, pode convocar uma assembleia nacional constituinte com o objetivo de transformar o Estado, criar um novo ordenamento jurídico e redigir uma nova Constituição".
A população tem reagido à pretensão chavista. Na quinta-feira, uma greve geral paralisou a Venezuela. No dia anterior, opositores bloquearam ruas e avenidas de Caracas, já com paralisação parcial de transportes. Explicitamente, os protestos pretendem pressionar Maduro a suspender a eleição dos membros da constituinte.
As manifestações se iniciaram em 1º de abril e já levaram à morte de 103 pessoas até sexta-feira.O governo não diminui a mensagem que vem das ruas. Fala em desencadear uma ofensiva para capturar os que, segundo Maduro, "conspiram" com os EUA para derrubá-lo. Pretende dar-lhes um "castigo exemplar". Para o dia 30, Maduro fala em "mobilizar uma grande força anti-imperialista" para "derrotar todos os planos intervencionistas do Império (EUA), de seus lacaios da América Latina e do mundo".
Os EUA, principais compradores do petróleo venezuelano (praticamente o único produto de exportação do país, responsável por 96% das divisas), já anunciaram em nota que, caso se mantenha o plano da constituinte, "tomarão rápidas e fortes medidas econômicas" e "não ficarão passivos enquanto a Venezuela desmorona".