Neste sábado, completam-se três meses em que a Venezuela está sob permanente protesto contra o presidente Nicolás Maduro, que impediu a realização de um referendo revogatório contra o seu mandato, cancelou eleições e programou a realização de uma assembleia constituinte que, segundo os analistas, serve para manter o poder sob seu próprio controle. Por trás desse quadro institucional, há um país com desabastecimento de 80% dos produtos básicos (comida e medicamentos), inflação anual estimada em 720%, índices de homicídios comparáveis aos de nações em guerra e filas nos mercados que chegam a um turno do dia.
Entre os quase 80 mortos nas manifestações, o 75º é David José Vallenilla, 22 anos, atingido no dia 21 por três tiros de escopeta à queima-roupa disparados no tórax por um militar em Caracas. David estava desarmado, e a sua morte foi registrada em vídeo. Resume o perfil das vítimas, em sua maioria jovens. Seu pai, David Vallenilla, foi chefe de Maduro quando trabalhavam no metrô de Caracas.
Nos 20 minutos de conversa pelo telefone com ZH, o advogado David Vallenilla, 56 anos, chorou durante quase todo o tempo. Vallenilla é pai de David José Vallenilla, 22 anos.
David era seu único filho?
Meu único filho. Sim, meu único filho.
O senhor foi chefe do atual presidente Nicolás Maduro?
Fui chefe de Maduro no metrô de Caracas, eu era o supervisor.
Em que época foi isso?
Foi entre 1994 e 2000. Eu deixei de trabalhar no metrô em 2007 e hoje advogo.
Vocês eram amigos?
Nos dávamos bem, nunca nos desentendemos. Nicolás era operador do transporte de superfície (forma de interligação do metrô). Era um homem centrado, equilibrado, bom de conversar. Na época, lutava sinceramente para melhorar as condições de seus companheiros, como sindicalista.
Ele conhecia o David?
Nicolás conhecia meu filho desde muito pequeno. Fomos companheiros de trabalho. Depois, perdemos o contato.
O presidente enviou alguma mensagem de solidariedade para o senhor?
Não. Me disseram que ele iria me telefonar, mas isso não ocorreu. Alguém do governo se aproximou de mim no funeral e disse: "Espera a chamada do presidente". Até hoje (terça-feira), isso ainda não ocorreu.
O que o senhor diria a Maduro depois de tudo isso?
Diria para ele que meu filho só queria uma Venezuela diferente, melhor. Tinha 22 anos e viveu sob um único governo. Queria pluralidade, governantes se revezando, e não esse apego todo ao poder. Eu diria: Nicolás, as pessoas estão sofrendo demais. Você precisa refletir. Esqueça desse apego todo ao poder. Quase toda a Venezuela não tem comida, remédios. O país é rico, mas o povo tem fome. Eu pediria a ele que não só o responsável pela morte do meu filho seja punido, mas os seus superiores, que o deixaram ter em mãos a escopeta com munição verdadeira. E você conheceu meu filho pequeno. Todos sabem, você sabe: ele foi morto em uma agressão direta. Pense, Nicolás, em tudo o que está acontecendo. Sempre o vi como uma pessoa centrada.
A morte de David foi uma execução?
Sim, foi uma execução covarde. Ele participava de manifestação da oposição. Mas sempre foi apartidário. Não tinha algum personagem político que seguisse. Mas tinha ideais, era muito idealista. Queria, de todo coração, um país melhor. Era um menino muito humano, de princípios sólidos. Eu e a mãe dele dizíamos para não ir às manifestações, mas não adiantou. Até queríamos que fosse viver na Espanha.
Como o senhor vê a repressão aos protestos, que chegam aos três meses e já deixaram mais de 70 mortos?
As autoridades têm o discurso de "águas e gases". Mas não foi com água e gás que assassinaram o meu filho. As balas eram de chumbo. E por que não atiraram nos pés dele, então? Atiraram no peito do meu filho, e quem faz isso sabe que vai provocar a morte da pessoa que é atingida.
Como o senhor soube da morte de David?
Eu estava em casa e vi pela televisão que tinha havido feridos. Depois, foi um desespero. Falei com a mãe dele pelo telefone, eram só gritos.
O senhor viu o vídeo que mostra a morte dele?
Não e nem estou preparado para ver. Meus parentes me contaram, e isso basta para me deixar desesperado. Até acho que não me disseram tudo.
Como era o seu filho?
David era hiperativo, apaixonado pela vida, corajoso, idealista, era um menino de grande valor. Mesmo não participando de qualquer partido político, não aceitava o que ocorria no nosso país. Eu e ele dividíamos a paixão pelo beisebol. Também coincidíamos na inconformidade em relação ao que ocorre na Venezuela.
O que David fazia?
Ele tinha terminado a formação, formando-se como enfermeiro especialista em intervenções cirúrgicas. Tinha muitos planos. Já estava trabalhando e ganhou seu primeiro salário. Quando ganhou, me perguntou o que poderia fazer com o dinheiro.
Ele tinha namorada, filhos?
Era um jovem muito simpático e bonito. Havia meninas apaixonadas por ele, mas eu sempre lhe disse para ter uma profissão antes de trazer um filho ao mundo. É muita responsabilidade. Precisa ter estabilidade.
Como o senhor e a mãe de David estão levando essa situação?
Somos separados, mas muito unidos e amigos, até porque tínhamos o David, nosso único filho. A minha família gosta muito dela, e a dela gosta de mim. Quando é Dia das Mães, confraternizo com ela e com o David, e, no Dia dos Pais, ela faz o mesmo. Estamos sempre juntos, irmão e irmã.
O que vocês vão fazer agora?
Lutaremos contra a violência, e quero que tudo se esclareça. A morte do meu filho não pode ficar por isso mesmo.
Qual é o seu sentimento, neste momento, em relação a tudo que está ocorrendo?
A dor é profunda. Meu filho era um lindo jovem, com grande futuro. Não se pode matar alguém por pensar diferente. É muito importante que o mundo inteiro saiba: David era um homem com desejo de salvar vidas. Seu norte era ser um profissional da saúde para salvar vidas. Quero que seja lembrado como alguém que lutou para servir à vida das pessoas. Não admito que digam que era um malandro ou um guerrilheiro ou qualquer qualificativo diferente do que era. Ele era um homem de bem e seu ideal era ter um país diferente, e era um homem bom que queria se dedicar a salvar vidas. Não foi um malandro.