A Venezuela, quando parece ter chegado ao fundo do poço em seu caos institucional e socioeconômico, sempre arranja uma forma de cavoucar para ir ainda mais fundo. Nos últimos dias, os mortos em confrontos passaram a casa das três dezenas, a mulher do principal preso político fez vigília para vê-lo em meio a rumores de que ele teria morrido no cárcere e até o papa Francisco deu sinais de que perdeu a paciência.
O contexto é das filas de sete horas para comprar um saco de farinha ou açúcar, inflação anual estimada em 700%, violência comparável à de países em guerra e desabastecimento em 80%. Protestos contra o presidente Nicolás Maduro recrudesceram na quarta-feira, quando ele convocou uma Assembleia Nacional Constituinte "popular", que a oposição considera "golpe de Estado" para evitar eleições livres.
Resultado: até sexta-feira, já havia 36 mortos em 35 dias de confrontos com as forças de segurança, compostas por militares, policiais e milicianos oficiais. Tamanha escalada na violência e no caos institucional e socioeconômico atingiu o limite até para o "Santo Padre". Francisco mantém o compromisso de promover o diálogo, mas agora impõe "condições claras", conforme disse no avião papal, em viagem entre Egito e Roma.
– Tem de ser com condições, condições muito claras – limitou-se a dizer o Papa.
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O cardeal Pietro Parolin, número dois da Igreja Católica, enviou ao governo e à oposição quatro contrapartidas básicas para a Igreja mediar um difícil diálogo: calendário eleitoral definido, libertação dos presos políticos, autorização para a assistência alimentícia e de saúde internacional e a restituição das funções do parlamento, que chegaram a ser cassadas pelo Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), de composição francamente governista.
Arcebispo define diálogo como "frouxo"
Desde outubro passado, o Vaticano vem tentando ajudar na pacificação venezuelana, diálogo paralisado desde 6 de dezembro. Os sinais do cansaço de Francisco se explicitaram mais no último domingo, quando, falando a dezenas de milhares de pessoas na praça de São Pedro, antes da oração de Regina Coeli, ele criticou a "grave crise humanitária, social, política e econômica que está exaurindo a população" e lamentou que "não param de chegar notícias dramáticas sobre a situação na Venezuela, com numerosos mortos, feridos e presos".
– Faço um sincero apelo ao governo e a todos os componentes da sociedade venezuelana para evitar formas de violência, respeitar os direitos humanos e buscar uma solução negociada – implorou o Papa, enfatizando que, ao fazer esse pedido, ele se junta "à dor dos familiares das vítimas", para os quais oferece "orações de conforto".
O jornal L'Osservatore Romano, da Santa Sé, definiu como "caos" a situação venezuelana. Editada no Vaticano, a publicação trouxe opiniões nesse sentido proferidas por autoridades internacionais e também a do cardeal Baltazar Porras, arcebispo de Mérida, segundo a qual a Venezuela está "às bordas da ditadura".
Tanto Maduro quanto a oposição responderam ao Vaticano. O presidente, que jamais cogitou acatar as condições papais, disse que é a favor do diálogo, mas que seus oponentes fogem sempre que surge a oportunidade. A Mesa de Unidade Democrática (MUD), aliança opositora, publicou carta na qual diz que, "sobre a necessidade de um diálogo com condições, a Unidade faz suas as condições apresentadas por Pietro Parolin".
O arcebispo de Caracas, Jorge Urosa Savino, faz eco com a impaciência do Papa e critica a constituinte de Maduro, que, segundo ele, não se destina a estabelecer uma nova Carta, mas sim a implementar um sistema "socialista" semelhante ao cubano. Savino demonstra toda sua contrariedade em relação ao governo:
– Me parece que o governo enganou o Vaticano e a Igreja, porque demonstra que quer ir adiante com o diálogo, mas em seguida toma uma série de medidas que vão contra isso. Ocorrem coisas incríveis. Aumentam o ataque ao Legislativo, atacam a imunidade dos parlamentares, não se libertam presos políticos.
Savino define as negociações mediadas pela Igreja como "frouxas" e conta que o Vaticano enviou carta ao governo e à MUD lamentando o "resultado não satisfatório" das conversas.
– Acreditamos no diálogo, mas para resolver. O fracasso ou o êxito dependem das partes envolvidas, não dos facilitadores (no caso, o Vaticano) – finaliza o arcebispo de Caracas.
Média de um morto por dia nos confrontos
Na sexta-feira, morreu a 36ª vítima nos distúrbios iniciados em 1º de abril. A média é de um morto por dia nos protestos venezuelanos. A vítima de sexta tinha a idade média dos outros, em sua maioria na faixa dos 20 anos. Desta vez, foi um homem de 22 anos, ferido nos distúrbios de quinta-feira na cidade venezuelana de Valencia.
Hecder Lugo Pérez morreu por causa de um ferimento a bala na cabeça. Ao menos outras quatro pessoas ficaram feridas durante os choques entre manifestantes opositores e militares. Também ocorreram saques ao comércio, outra prática comum.
Enquanto mortes se sucedem, Lilian Tintori, mulher do líder oposicionista Leopoldo López, faz vigília em frente à prisão de Ramo Verde. Lilian está há 32 dias sem ver o marido, condenado a 10 anos de cárcere por supostamente fomentar a violência política.
A "Mulher Maravilha" de Caracas
Entre as centenas de imagens que têm circulado sobre os protestos e confrontos na Venezuela, há uma que mostra a modelo Caterina Ciarcelluti, 44 anos, já chamada nas redes sociais como "Mulher Maravilha Venezuelana".
Na imagem, a bela Caterina está equipada com capacete e máscara, lançando pedra contra a Guarda Nacional Bolivariana em confronto na autopista Francisco Fajardo, a mais importante de Caracas.