Do calor da campanha mais suja da história americana para os dias seguintes à eleição, algo mudou. O Donald Trump presidente eleito tem se comportado de forma diferente do político agressivo, por vezes fanfarrão, da campanha. Sereno, o bilionário já não fala em deportar todos os 11 milhões de imigrantes ilegais. Apenas 3 milhões, garantiu em entrevista no domingo. Apenas? Sobre outra de suas promessas polêmicas, a construção de um muro na fronteira com o México, admite que, em alguns trechos, poderá erguer uma “cerca”, e não uma barreira de concreto.
Onde foi parar aquele Trump “sem filtro”? Sua guinada retórica pode indicar uma tentativa de manter o enigma em torno de sua personalidade – ou porque há dúvidas sobre como cumprir promessas de campanha ou porque nem ele sabe, ao certo, o que irá fazer.
O fato é que, na entrevista concedida ao programa 60 Minutes, da CBS, exibida no domingo, ele deu sinais erráticos (compare no quadro abaixo) e amenizou até a intenção de acabar com o Obamacare, o sistema de saúde universal criado pelo governo Barack Obama.
A um primeiro olhar, pode parecer uma mudança abrupta de discurso. Não é. Nas semanas anteriores ao pleito, o candidato já vinha moderando sua fala em busca do eleitor menos radical e para se aproximar de negros e latinos.Uma data de inflexão marcou a fase “paz e amor”: 18 de agosto, em Charlotte, Carolina do Norte, quando Trump, afirmou:
– Acreditem ou não, eu realmente lamento, particularmente onde possa ter causado dor às pessoas.
No discurso da vitória, em 9 de novembro, Trump pregou união. O tom amistoso foi estendido ao primeiro encontro com Obama, no Salão Oval da Casa Branca, e na entrevista à CBS, quando admitiu que poderia pedir conselhos também a Bill Clinton. Nos tempos sujos da campanha, Bill era “abusador de mulheres” e Hillary “trapaceira, que deveria estar na cadeia”.
Ainda que Trump pretenda amenizar ideias de campanha, deportar 3 milhões de pessoas ou construir uma barreira – cerca ou muro – são medidas extremas e caras, nem tão fáceis de aprovar no Congresso, mesmo com maioria republicana. Sua equipe também segue firme no propósito de retirar o país do acordo do clima.
DEPORTAÇÃO DE IMIGRANTES ILEGAIS
O CANDIDATO – No início da campanha, Trump sugeriu que deportaria todos os imigrantes ilegais dos EUA – estimados em cerca de 11 milhões: – Quando o México envia essas pessoas, não está mandando seus melhores. Não está mandando você, e você (apontando para a plateia). Eles estão mandando pessoas que têm muitos problemas, e elas trazem seus problemas para nós. Estão trazendo drogas, crimes, estupros. Algumas, admito, são boas, mas conversei com guardas de fronteira, e eles nos disseram o que estão pegando. (...) E não vêm só do México, vêm de todo o Sul, da América Latina e do Oriente Médio.
O PRESIDENTE ELEITO – Após a eleição, Trump disse que seguirá adiante com a ideia, mas reduziu bastante a cifra: prometeu deportar cerca de 3 milhões de imigrantes ilegais, mas apenas aqueles que têm antecedentes criminais:– O que faremos será pegar as pessoas que são criminosas, que têm ficha criminal, membros de gangues, traficantes, um monte dessas pessoas, provavelmente 2 milhões, ou até 3 milhões, e vamos tirá-las do país, elas estão aqui ilegalmente. Depois que as fronteiras estiverem seguras e que tudo se normalizar, vamos cuidar das pessoas de quem você (a repórter que perguntou) está falando (ilegais, mas não criminosos). Que são pessoas incríveis.
MURO NA FRONTEIRA
O CANDIDATO – Trump prometeu construir um muro de concreto ao longo da fronteira com o México para conter a imigração ilegal. A barreira, segundo o candidato, seria paga pelos próprios mexicanos, através do aumento nas tarifas de fronteira.– A gente vai fazer um muro de verdade. Tá vendo esse teto? Vai ser dessa altura, talvez um pouco maior – afirmou, em discurso no início da campanha.
O PRESIDENTE ELEITO – No domingo, em entrevista à rede CBS, o bilionário voltou a abordar o tema da fronteira e disse que, em alguns trechos, em vez de muro, admite a construção de cercas.– Pode haver cercas. Mas, para algumas áreas, um muro é mais apropriado. Eu sou muito bom nisso: se chama construção.
XINGAMENTO AOS CLINTON
O CANDIDATO – A campanha foi agressiva, cheia de xingamentos entre Trump e Hillary Clinton. Em um dos três debates na TV, o republicano atacou o marido da adversária, o ex-presidente Bill Clinton, que estava na plateia:– Se você olhar Bill Clinton... O que ele tem feito para as mulheres... Nunca houve ninguém na história da política nesse país que tenha sido tão abusivo para as mulheres.Antes, ao se referir à derrota de Hillary nas primárias internas do Partido Democrata, em 2008, para Obama, afirmou: – Ela (Hillary) ia derrotar Obama. Ia derrotá-lo, era favorita, e foi enrabada. Ela perdeu, perdeu.
O PRESIDENTE ELEITO – Na entrevista de domingo, Trump elogiou a família Clinton, admitiu que pode pedir conselhos a Bill e falou, entusiasmado, sobre o telefonema que recebeu de Hillary após a vitória:– Hillary me ligou, e foi um telefonema adorável. E foi duro para ela fazer essa ligação, eu posso imaginar. Mais duro do que teria sido para mim, e para mim já teria sido muito difícil. Ela não poderia ter sido mais agradável. Ela foi uma grande competidora, ela é muito forte e muito esperta.Sobre Bill Clinton, disse:– Ele não poderia ter sido mais encantador. Disse que foi uma disputa incrível, uma das mais incríveis que ele já viu. Ele foi muito, muito...realmente muito legal.
REVOGAÇÃO DO OBAMACARE
O CANDIDATO – Durante a campanha, Trump prometeu “revogar e substituir imediatamente” o Obamacare, sistema de saúde universal nos EUA, uma das principais medidas do governo Barack Obama e comparado muitas vezes ao SUS brasileiro.
O PRESIDENTE ELEITO – No domingo, o presidente eleito admitiu que estuda manter parte das coberturas, porque “elas são a parte mais forte” do programa. Também tranquilizou aqueles que poderiam ficar sem cobertura de saúde. Disse que não haverá um intervalo que deixe pessoas desamparadas: – Vamos fazer isso simultaneamente, elas ficarão bem. É isso que eu faço, faço um bom trabalho. Sei como fazer as coisas. E será um ótimo sistema de saúde, por muito menos dinheiro.
XINGAMENTOS A OBAMA
O CANDIDATO – Na campanha, Trump chamou o presidente Barack Obama de “fundador do Estado Islâmico”, entre outras agressões ao atual presidente democrata.
O PRESIDENTE ELEITO – Após o encontro com Obama, na semana passada, Trump elogiou o presidente: – Achei ele magnífico. Achei ele... muito esperto e muito agradável. Grande senso de humor. (...) Eu disse coisas terríveis sobre ele, e ele sobre mim. Nós jamais discutimos o que dissemos um sobre o outro... vou ser honesto, do meu ponto de vista zero, zero (constrangimento).”