Os sinais estão em toda parte: nos Estados Unidos, partidários de um grupo de direita receberam nesta semana o presidente eleito Donald Trump com saudações nazistas – com direito a braço estendido e "Heil Trump!" (Salve Trump).
Na Alemanha, a principal líder da extrema direita em ascensão, Frauke Petry, já comparou os refugiados a esterco – e chegou a defender que a polícia deveria ter o direito de atirar em migrantes para proteger suas fronteiras.
No Reino Unido, a opção pelo Brexit chacoalhou a União Europeia – e cada vez mais conquistas que pareciam asseguradas ameaçam desmoronar.
Desiludidas com a vida em aldeia global, as principais potências do mundo ocidental começam a marchar juntas rumo à extrema direita, ressuscitando velhos símbolos e tentando reerguer cercas em busca de proteção. Qual o significado dessa ascensão conservadora em escala mundial, e que consequências ela traz?
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Para Gaspard Estrada, diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e do Caribe da Universidade Sciences Po de Paris, parte deste movimento é impulsionado por uma sensação de "traição": sentindo-se injustiçados pelos efeitos associados à globalização, como a crise econômica e o desemprego, fatias cada vez maiores da população aderem a discursos que contestam o establishment. Isso vale tanto para os eleitores de Trump, nos Estados Unidos, como para o crescimento da popularidade da ultradireitista Marine Le Pen, na França, que desponta como favorita para as próximas eleições presidenciais no país. Mas há uma diferença: enquanto Trump é considerado um outsider, que conquistou votos com sua figura singular que destoa do próprio Partido Republicano, na Europa há uma tendência de radicalização a partir de partidos já articulados – que há décadas pregam discursos xenófobos, mas só agora encontram eco na população. Diante isso, Estrada considera o fenômeno europeu mais perigoso – por não ser um ponto fora da curva, mas um cenário estrutural.
– O quadro é complicado porque a esquerda e a direita estão ficando sem respostas para os problemas. Hoje muitos franceses já não percebem a diferença entre esquerda e direita, acham que é a mesma coisa. E essa continuidade do desemprego, da falta de oportunidades, faz com que esse discurso antissistema cole – observa.
O fato de Trump ser um outsider não significa que está isolado. Na avaliação do filósofo Vladimir Safatle, professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, fenômenos como o que garantiu a sua eleição estão longe de ser passageiros. E representam o fim da democracia liberal, que tomou forma após a II Guerra Mundial. Um esgotamento que teria começado a partir da crise econômica de 2008, ainda não resolvida.
– Se diz que o pior da crise já passou, mas a eleição do Trump mostra que essa não é a leitura da classe média americana. E o eixo de centro não conseguia mais dar respostas para isso. A democracia liberal funcionou enquanto tanto a direita quanto a esquerda eram puxadas pelo centro. Isso acabou, agora a política passa pelo deslocamento em direção aos extremos, que serão o próximo capítulo da política mundial – analisa.
Uma das características da nova onda é justamente o populismo, que costuma ser associado à esquerda, especialmente na América Latina, mas agora exibe sua versão mais conservadora – e chega ao Velho Mundo. Com discursos de salvação, políticos conservadores arrebanham eleitores desgostosos com as políticas tradicionais. Essa guinada também expressa uma desilusão com governos esquerdistas – como se observa no caso do Brasil, que vê aumentar a popularidade do centro conservador, evangélico, e de figuras como Jair Bolsonaro (PSC-RJ), após 13 anos de gestão do PT na presidência.
– Mais preocupante para mim do que a ascensão da direita é a desagregação da esquerda. A esquerda não tem força porque traiu as classes populares. O que a esquerda conseguiu fazer foi uma gestão da mesma política econômica com rosto mais humano. Mas, se só tem um modelo econômico, as pessoas pensam: vamos entregar para quem realmente entende do mercado – analisa Safatle, lembrando que a "direita populista" provoca espanto à própria direita tradicional:
– Isso começa a assustar, pois passa dos limites, não é algo controlado classicamente.
Esses resultados imprevisíveis na política global indicam, na visão do sociólogo Leo Peixoto Rodrigues, professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciência Política e em Sociologia da UFPel, que existe uma racionalidade além da lógica do mercado. E o novo populismo seria um indicativo de que "a direita tem aprendido com a esquerda" – sem esquecer que esquerda e direita são "caricaturas", pois na vida real "é tudo muito mais embaralhado".
– Trump cativou o eleitorado vendendo facilidades, fez um populismo de direita e buscando construir um inimigo: eles, os outros, os migrantes. A ideia era construir um vilão, aquele que não te deixa emancipar. Assim como a esquerda costuma fazer, quando coloca a culpa na mídia, na burguesia. A Dilma (Rousseff), por exemplo, também mentiu descaradamente sobre a situação econômica para se eleger. Essa conversa gruda na juventude escandalosamente fácil, é um discurso de campanha. Mas não acredito que ele (Trump) vá continuar com o mesmo discurso quando assumir o poder – pondera Rodrigues.
NA PRÁTICA,
A TEORIA É OUTRA
A distância que separa a bravata de discursos radicais das ações que serão de fato executadas nos mandatos ainda intriga analistas de todas as vertentes. Uma vez que assumirem o poder, os eleitos vão realmente fazer tudo o que prometeram? Trump retirará os Estados Unidos do acordo do clima e construirá um muro na fronteira com o México? Os partidos xenófobos vão expulsar os refugiados da Europa? A aposta dos especialistas é de que não será bem assim, como indicam os discursos mais contidos de Trump depois da vitória na eleição. Mas a preocupação permanece.
– Se os partidos da extrema direita quiserem de fato ganhar na Europa, vão ter que abrir o seu discurso. Mas o problema é que a gente sabe o que eles pensam. E é um discurso racista. Acham, por exemplo, que a religião muçulmana deveria ser, senão proibida, ao menos colocada num canto. No fim das contas, o problema não é mais eleitoral, mas da sociedade – interpreta Gaspard Estrada, da Sciences Po.
Outro problema, destaca o historiador Gunter Axt, colaborador do Instituto Diversitas da USP e pós-doutorando em Direito na UFSC, é que o discurso da nova direita populista flerta com o fascismo. O apoio crescente a posições xenófobas contra migrantes e a formação de milícias no interior dos Estados Unidos seriam duas amostras preocupantes do espectro que tem ganhado força.
– Existe algum tipo de estética da violência desbragada, e é um sintoma ruim. Não podemos banalizar o mal. Acho difícil o surgimento de um novo partido nazista, mas outras formas de horror podem surgir. Tanto que o Estado Islâmico comemorou a eleição do Trump, porque acredita que sairá fortalecido com as políticas dele – exemplifica o historiador.
Axt lembra que a história se move em movimentos pendulares. E observa que o ciclo atual, agora em declínio, teria se estabelecido após a queda do muro de Berlim e atingido o ápice com a Primavera Árabe – que inicialmente foi mal interpretada.
– Pensava-se que seria um movimento de libertação, e hoje sabe-se que as intervenções foram desastrosas, sob o comando da Hillary Clinton. Isso desestabilizou a Europa: a remoção do Kadaffi na Líbia instalou na região um barril de pólvora, e depois tivemos o desastre na intervenção da Síria, que acabou com catástrofe humanitária e a chegada dos refugiados na Europa. Não há ação sem reação, e houve um erro estratégico: a crença de que o mundo caminhava para a democracia, para o liberalismo, para a globalização liberal. Isso começou a entrar em debacle quando se percebeu que foi um equívoco de avaliação – afirma.
Como resultado, a massa de refugiados vindos de países muçulmanos aumentou a insegurança entre os europeus já ressentidos com as políticas econômicas implantadas pela União Europeia:
– Na Normandia, por exemplo, estimularam a substituição da produção de pera por trigo. Isso fez com que tirassem as cerquinhas de barro que dividiam os pomares, só que eram elas que evitavam inundações nos terrenos. E, com a chegada do trigo, também implantaram maquinário, que aumentou o despovoamento do interior da região. Essas pessoas afetadas entendem a União Europeia como autoritária, e vão reagir. Isso tem sido cada vez mais capturado pelo discurso da nova direita populista. É um indício de falência do Estado Nacional em resolver questões de cidadania – interpreta, acreditando que o caminho para resolver esse dilema seria ir na direção contrária, apostando em mecanismos globalizados de governança e redes de municípios:
– Esse tipo de reações extremadas vem na contramão de tudo o que precisaríamos no momento.
Ao caracterizar o fenômeno, o cientista político Adriano Codato, professor da Universidade Federal do Paraná, considera importante diferenciar a direita tradicional da nova direita populista. Enquanto a primeira tem viés liberal, a exemplo dos republicanos na França, a segunda é intervencionista e nacionalista, como a Frente Nacional de Le Pen.
– É mais ou menos como comparar os políticos do PSDB, como o Armínio Fraga, com o Bolsonaro. O que junta todo mundo é o ultraconservadorismo de costumes. A extrema direita é antiestablishment, é uma coalizão entre os ressentidos socialmente e os novos ricos, que também são vistos com desprezo pelo establishment – define Codato.
Como consequência do novo equilíbrio de forças, o professor acredita que pode ocorrer "uma grande virada conservadora", que deve impactar especialmente o direito de minorias. Na França, já está em discussão a proibição de casais gays adotarem crianças. No Brasil, ele acredita que temas como cotas podem voltar a ser discutidos, assim como a Lei Maria da Penha.
– O direitos do século 20 eram conquistas trabalhistas, previdência. Os direitos do século 21 são direitos sociais como cotas e questões de gênero. E esses são os mais ameaçados. Os discursos dos partidários de Trump já mostraram que podem apoiar setores econômicos com defesa sindical do século 20, e desprezo absoluto pelos direitos do século 21. E no Brasil isso fica mais complicado, porque temos junto com a ascensão da direita a ascensão dos evangélicos – assinala.
Depois da evolução da garantia dos direitos individuais, por que o mundo parece inclinado a retornar ao caminho da xenofobia? Um dos organizadores do livro Direita, volver, publicado em 2015, o professor titular de Ciência Política e de Relações Internacionais da Unicamp Sebastião Velasco reflete sobre o tema na introdução da obra. A primeira premissa é que o "o passado condena".
Por isso, "manchada pela exibição mundial dos horrores do nazismo e pela vergonha da colaboração com os invasores, a extrema direita encolheu por toda Europa e desceu aos subterrâneos da vida pública" após a II Guerra Mundial. Ao atualizar a anterior, a segunda premissa também explica o momento atual: "O passado condena, mas o tempo corrói a memória". Passado o trauma que se seguiu ao pós-guerra, a nova extrema direita e suas posições voltam a ser vistas como alternativa de poder. Velasco analisa:
– Vivi na França na década de 1980, e essa direita já estava lá. Lembro que um dia cheguei para me matricular num curso de francês e vi uma coluna de jovens de extrema direita marchando. Isso sempre existiu na Europa em todo o pós-guerra, mas antes ficavam à margem. O que vemos agora é a incorporação desses grupos no espaço político central, desafiando os partidos estabelecidos. Isso tem de ser compreendido no contexto de uma crise de representação e uma crise dos partidos de esquerda.
Nesse caminho, as esquerdas sofrem por terem se afastado de suas bases sociais e aderido a discursos de austeridade, enquanto os novos líderes da extrema direita se apropriaram de bandeiras como a defesa dos direitos trabalhistas.
– A direita está dando voz a grupos enfezados, que estavam em situação de desproteção e orfandade. E a esquerda paga o preço por ter se adaptado à ordem política e econômica e está se revolvendo no Brasil e no mundo todo. É uma situação de desequilíbrio. Se a esquerda se mantiver nessa linha, vai estar cavando seu túmulo – alerta Velasco.
Ao defender o fechamento de fronteiras, as novas forças da Europa e dos EUA acreditam que estarão mais protegidas. Mas, num mundo tão conectado e permeado pela tecnologia, isso faz sentido?
– Existe um desejo de descomplexificar as coisas, um desejo de que o mundo caiba da minha compreensão. Como não damos conta da complexidade, o desejo parece ser: "vamos nos desglobalizar". Mas todos os processos produtivos estão globalizados. Isso me parece ingênuo – opina o professor Leo Peixoto Rodrigues, da UFPpel.
Apesar dos problemas, Rodrigues acredita que a tendência é de reacomodação das forças – e não de colapso global.
– As democracias não são espaços tranquilos, em que as pessoas são felizes. São espaços de luta, de disputa. As sociedades contemporâneas se constituem em esferas de disputas por diferentes grupos que lutam por reconhecimento. E existem disputas antagônicas. É uma dinâmica própria. Chegamos aonde chegamos na modernidade por isso – salienta, acrescentando:
– Não é o fim do mundo. O Trump não vai apertar um botãozinho e detonar bombas nucleares. Não vejo esse movimento como catastrófico, mais como uma acomodação de placas tectônicas. O mundo não está ficando mal e antes era bondoso. O mundo nunca foi bondoso. Nem totalmente mal. As coisas vão se acomodando.
Ao mesmo tempo em que apontam para um momento de incertezas e preocupação, analistas compartilham pelo menos uma convicção: o pêndulo da história balança para a direita, mas não está fixado lá.
– A história tem uma imponderabilidade intrínseca, mas há algumas regrinhas. Tudo o que pende excessivamente para um lado depois acaba caindo no outro – resume o historiador Gunter Axt.