Correção: o republicano Mitt Romney não está entre os cogitados para formar um eventual governo Hillary Clinton, como informado anteriormente nesta reportagem. A informação ficou no ar das 3h02min do dia 5/11/2016 até as 11h10min do dia 6/11/2016. O texto está corrigido.
Hillary Clinton está deitada no banco traseiro de uma van azul com os vidros escurecidos. O veículo deixa a casa dos Clinton, em Washington, rumo à residência de uma amiga, Dianne Feinstein. É 5 de junho de 2008. O contorcionismo na van é uma estratégia para escapar dos jornalistas, enquanto segue para um encontro secreto com Barack Obama. A casa de Dianne é território neutro para os dois rivais que travaram uma guerra nas primárias internas do Partido Democrata.
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As feridas dificilmente cicatrizarão em um só encontro. Obama vencera, vai disputar a presidência. Hillary chega antes à casa da amiga. Quando Obama acomoda-se em uma poltrona, Dianne, a anfitriã, serve uma taça de Chardonnay da Califórnia, e os deixa a sós. Hillary e Obama conversam por uma hora e meia em frente à lareira. Começava a nascer ali, a goles de vinho, uma aliança que só viria a público em janeiro do ano seguinte, quando Obama chamou a antiga adversária para o principal posto da diplomacia americana, o de secretária de Estado. Oito anos depois, se for eleita na próxima terça-feira, Hillary deverá governar seguindo a cartilha acertada naquela reunião.
No comando do Departamento de Estado, Hillary reorientou a política externa em torno do que chama "poder inteligente": o uso da força e da diplomacia aliados à ideia de um mundo com "mais parceiros e menos adversários". Especialistas apontam o governo Hillary como alinhado ao de seu antecessor, porém pendendo para a agressividade dos falcões nos bastidores do poder em Washington.
– O governo Hillary será uma continuidade da política do Obama, porém mais forte. Em alguns casos, podendo ser até muito intrusivo em outros países – avalia o ex-embaixador brasileiro em Washington Rubens Barbosa.
Uma das apostas de analistas internacionais é de que Hillary ampliaria operações contra o grupo terrorista Estado Islâmico, ainda que sem a presença de tropas em terra. Prova da mão pesada da senadora foi dada na noite de maio de 2011, quando um seleto grupo de assessores ficou sabendo onde estava Osama bin Laden. Alguns titubeavam sobre a infiltração de soldados no Paquistão para capturar o terrorista. Nem Obama tinha certeza se a decisão seria correta. Havia risco de um massacre ou de uma crise diplomática. A opinião de Hillary foi determinante para que a missão fosse adiante. Em outro momento, quando se discutia o futuro da guerra na Síria, Hillary defendeu a mudança de regime. Dessa vez, foi voto vencido. As pombas da cúpula de Obama ganharam o debate, e Bashar al-Assad segue no poder.
Paira uma incógnita em Washington sobre o nível de influência de Bill Clinton sobre a mulher. Como "primeiro-cavalheiro", o ex-presidente (1993-2001) talvez precise fechar a Fundação Clinton para evitar conflito de interesses. Provavelmente será escolhido para missões diplomáticas informais – algo como Michelle Obama faz em viagens nacionais. Há quem fale em um projeto de poder do casal, a exemplo dos Kirchner, na Argentina. Primeiro Bill por oito anos, depois Hillary por mais oito (agora e em 2020). Em nome desse projeto, ela teria suportado pressões como em 1998, quando semana após semana a intimidade do casal foi exposta por conta do affair do então presidente com a ex-estagiária Monica Lewinsky. Se a voz de Bill no aconchego do lar for forte, o governo Hillary será, de fato, mais agressivo na política externa. Foi por decisão dele que as forças armadas americanas enfrentaram sua mais vergonhosa missão antes do Iraque: a caçada a um líder terrorista nas ruas de Mogadíscio, na Somália, em 1993.
E para as relações com a América Latina e o Brasil, o que esperar? Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, essa não é uma prioridade na agenda da Casa Branca, mais preocupada com o Iraque, o Afeganistão, a Europa, Putin e a China:
– Não muda absolutamente nada. A América Latina permanece fora do radar dos formadores de política de Washington – diz Rubens Barbosa.
PROMESSA DE AUMENTAR
O SALÁRIO MÍNIMO
Hillary guarda algumas semelhanças com Obama – ou, no mínimo, é possível traçar paralelos. Ele foi o primeiro negro a chegar à presidência; ela seria a primeira mulher – dois tabus derrubados na história do conservadorismo americano. Ambos são advogados e tiveram início de carreira como ativistas de justiça social. Ela trabalhou para o Fundo de Defesa da Criança, registrou eleitores hispânicos no Texas e prestou serviços de assistência jurídica a pessoas carentes. Ele foi organizador comunitário no sul de Chicago.
"Compartilhávamos da antiquada ideia de que o serviço público é uma tarefa nobre, e acreditávamos na promessa fundamental do sonho americano: não importa quem você seja nem de onde veio, se trabalhar duro e jogar conforme as regras, você deve ter a oportunidade de construir uma vida boa para si e para a sua família", escreveu Hillary em sua autobiografia, Escolhas difíceis (Globo Livros, 2016).
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Hillary conta com o apoio de grupos gays e feministas, mas não é unanimidade entre imigrantes. Em um grupo do WhatsApp do qual participam mais de cem brasileiros que moram nos EUA, a pergunta sobre quem seria melhor para a comunidade fez pipocarem na tela mensagens como "Trump now!!!", "Mais quatro anos de esquerda vai ser duro!", "Vai encher de mais cubano!". Segundo uma das integrantes do grupo, que se identificou apenas como Priscila, a elevação de programas sociais durante o governo Obama sobrecarregou a classe média e contribuiu para o aumento do racismo.
Uma das vozes discordantes é a do administrador da página Brasileiros em Miami no Facebook, o paulista Wanderson dos Santos, 34 anos. Há 10 anos nos EUA e casado com a americana Sarah, o artista visual diz que muitos imigrantes assumem posições políticas baseados apenas na opinião de vizinhos de bairro. Desde a crise de 2008, acredita que a economia melhorou e que Hillary dará continuidade a esse crescimento:
– Miami vive um bom momento. Investimentos internacionais foram retomados.
Um mandato Hillary viria com a promessa de aumentar os ganhos das famílias como a de Wanderson. Entre os itens do programa de governo democrata, estão benefícios fiscais para endividados. Ela pretende reduzir a burocracia para pequenos negócios, incentivar a distribuição de lucros entre funcionários.
– Trump representa o 1%, Hillary representa a classe média. E a classe média vai continuar gastando, fazendo com que a economia se mova – compara Sarah, que nasceu no Texas, um Estado tradicionalmente republicano.
Um tema polêmico, que pode estar na pauta dos primeiros cem dias de governo, é a promessa de aumentar o salário mínimo de US$ 7,25 por hora para US$ 12. Reações imediatas de grandes empresas, como a WalMart (da qual Hillary fez parte da comissão executiva entre 1986 e 1992), poderiam provocar mais desemprego.
Dentro da Casa Branca, independentemente dos conflitos das primárias, especialmente com o adversário Bernie Sanders, Hillary tem uma margem confortável para construir uma equipe sólida. Ela deve trazer como aliados ex-secretários do governo Obama. Entre os talentos que já deixaram o governo para se integrar à campanha está John Podesta, assessor do presidente e antigo chefe de gabinete de Bill Clinton. Outra das principais assessoras de Obama, Jennifer Palmieri, diretora de Comunicação da Casa Branca, reforçou as fileiras da candidata. Há interesse de todos os homens e mulheres da presidente em manter o legado de Obama – e, principalmente, seus empregos.