Pelas pesquisas e seus mais variados recortes, fica claro: Donald Trump ganhou a presidência dos Estados Unidos ancorado no apoio dos homens brancos, desiludidos, idosos e de meia idade, sem formação universitária e, especialmente, protestantes e mórmons. Esse é o perfil humano. Mas tais pessoas vêm de uma parte abrangente da principal potência mundial, que costumamos lembrar pela diversidade viva e cosmopolita de Nova York, pela aragem da Califórnia ou pela arrogância de Washington. Elas vêm, em sua grande maioria, daquilo que poderíamos chamar de "EUA profundos". Tingem o mapa americano com o vermelho republicano em praticamente todo o centro-sul tradicionalista, deixando as bordas, vocacionadas naturalmente para a abertura ao mundo, com o azul democrata.
As pesquisas até desdenhavam eleitores sem formação universitária, que perfazem um terço do eleitorado. Mas ficou comprovado que eles são decisivos nas eleições. Trabalhadores brancos que costumavam votar no Partido Democrata e aderiram à candidatura do presidente Barack Obama em 2008 e 2012 se bandearam para os republicanos e ajudaram Trump a surpreender o mundo. Exemplos que têm sido lembrados nesses dias de perplexidade são o vale do Rio Wyoming, na Pensilvânia, que trocou os democratas por Trump. E assim ocorreu em cidades industriais e setores rurais, como Iowa. São algo como 10 milhões de trabalhadores brancos de meia idade que fizeram a diferença pró-Trump.
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– Foi principalmente o voto do saudoso dos caubóis, do rancheiro, das pessoas do interior, que não quer saber de imigração, que querem os EUA antigos. Houve uma saturação do politicamente correto e uma economia americana menos pujante. A direita americana se aproximou da esquerda latino-americana no discurso antiglobalização – diz o historiador Voltaire Schilling.
Voltaire indica, geograficamente, o "miolo dos EUA" como origem dos votos de Trump. Ressalva que, em 30 ou 40 dias, aparecerão mais conclusões sociológicas sobre o fenômeno. Mas, ao mesmo tempo, indica uma característica humana que pode justificar o voto em "um candidato sem propostas generosas", que "fala em expulsão e em muro", um "estilo cafajeste".
– É como um naufrágio. O ser humano tem esta natureza, esta perfídia. Perde o caráter civilizatório quando a questão é de sobrevivência. Por isso, o voto de latinos, como os da Flórida, no Trump. São como os náufragos que rejeitaram as novas ondas migratórias. Temem o envolvimento com o crime desses novos imigrantes, que podem sujar sua imagem e tirar empregos. Não imaginávamos que os latinos votassem em um candidato abertamente anti-imigrantes, mas isso ocorreu. É como o náufrago que está em um escaler e que sabe que, se vierem outros náufragos, o escaler pode afundar, e ele pode morrer. Então, os rejeita – diz Voltaire.
Cientista político teme apelo obscurantista
O historiador também chama a atenção para a Flórida, "porto de acolhida a latinos cubanos, haitianos, porto-riquenhos, colombianos, venezuelanos, brasileiros, em razão da insegurança".
– É para a Flórida que vai quem foge dos horrores latino-americanos. E a Flórida votou em Trump – diz.
Cientista político e profundo conhecedor dos EUA, o professor da Universidade de São Paulo (USP) Kai Enno Lehmann traça um perfil resumido do eleitor de Trump, ressalvando que o contexto é ainda mais complexo.
– O eleitor de Trump, basicamente, é o do homem do interior, do centro-sul, e os trabalhadores de Estados que se desindustrializaram em razão da globalização, que lhe tirou empregos – diz Lehmann, citando Ohio e Pensilvânia.
Complexo, também, é o perfil do próprio Trump. Conforme Lehmann, o presidente eleito dos EUA tende a se incomodar com os eleitores mais conservadores, para os quais dirigiu um discurso por vezes obscurantista – que terá de ser confirmado com ações. O cientista político lembra que Trump já foi democrata, defensor do aborto e até financiador de campanhas para a agora adversária Hillary Clinton.
– Trump é de Nova York. Traz algo dessa origem. Não era um político conservador nos costumes. Na verdade, ele não tem uma visão política fixa.
O professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Alcides Vaz chama a atenção especialmente para os votos em Michigan:
– Michigan precisa ser estudado com atenção. É um berço democrata, sempre se orgulhou por ter plantadas lá as causas dos direitos individuais. Ainda industrializado, sofreu com as terceirizações e com a automação.
Vaz identifica outro elemento, além do conservadorismo e da perda de empregos, que explica a vitória de Trump: o sentimento contra o sistema político.
– O sentimento antiestablishment foi captado por Trump. É mais difuso, não guarda território. Trump questionou o sistema, os lobbies, a tecnocracia, o corporativismo. Isso foi ao encontro do atual humor americano – diz ele.
Exemplos emblemáticos:
Ohio
Estado que contempla duas características marcantes nos eleitores de Trump. Os "caubóis", que se manifestaram a favor do republicano e o trabalhador que perdeu emprego por conta da globalização.
Texas
Parte da população texana, como de outros Estados do sul e centro-sul americanos, tem origem mexicana. Muitos dos que estão lá não aceitam os ilegais. Voltaire Schilling os compara a um náufrago. Se vierem outros ao escaler, vão morrer afogados. São os sobreviventes que rejeitaram as novas ondas migratórias. Temem que envolvimento dos ilegais com o crime arranhe sua imagem. Muitos latinos votaram no candidato de discurso contra os imigrantes.
Michigan
Estado em que o presidente Barack Obama costumava demonstrar forte influência, ainda industrializado. É onde fica Detroit, grande usina automotiva, que perdeu força. Surge como grande incógnita. Defensor das conquistas individuais, votou em Trump e aparece como desafio para os analistas decifrarem com calma.
Flórida
Não se imaginava vitória para Trump. Firmou-se por décadas como o local onde se acolhem os latinos (cubanos, haitianos, porto-riquenhos, colombianos, venezuelanos e brasileiros), em razão da insegurança nos países de origem. A Flórida é um porto de chegada dos latinos. Pode ser apresentada como o escaler de sobreviventes que fogem das crises latino-americanas.
Pensilvânia
Estado conhecido por ter perdido muito com a globalização econômica das últimas décadas, que, em sua narrativa, é sinônimo de desemprego. Já foi reduto democrata. Deixou de sê-lo.