Empresários argentinos, os irmãos Juan e Jorge Born eram herdeiros de um império econômico, a Bunge & Born – terceiro maior conglomerado da América Latina e uma das cinco principais beneficiadoras de cereais do planeta. Presente em mais de 30 países, era líder de mercado no Brasil, onde comandava a Samrig, no Rio Grande do Sul, e a Moinhos Santista, em São Paulo, além de dezenas de outras indústrias.
Sequestrados em 19 de setembro de 1974 pelo grupo guerrilheiro peronista Montoneros, em Buenos Aires, os dois irmãos foram libertados mediante pagamento de resgate de US$ 60 milhões, um recorde mundial – US$ 268,8 milhões em valores atualizados, o equivalente a R$ 872 milhões.
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Juan passou seis meses no cativeiro, e Jorge, nove. O episódio virou manchete mundial e, recentemente, ganhou destaque no livro Born, escrito pela jornalista argentina María O'Donnell, 46 anos. Lançada apenas em espanhol, a obra será adaptada para o cinema até 2018 – os direitos autorais foram adquiridos pela mesma produtora de O Clã, recente sucesso do cinema portenho (e outro filme sobre sequestros reais, estes realizados por um ex-agente da ditadura).
– O sequestro dos Born foi um dos componentes que levaram ao golpe militar (em 1976). A Argentina enfrentava um momento de extrema violência e medo. O resgate rendeu muito aos montoneros, que combatiam o governo. A democracia era frágil, e os militares queriam acabar com a guerrilha e com o peronismo – avalia O'Donnell.
O duplo sequestro rendeu um resgate de milhões de dólares que se transformou em maldição. A caçada ao butim gerou disputas entre guerrilheiros e os militares que tomaram o poder na Argentina, provocando novos sequestros, roubos, torturas, até a derrocada gradual dos montoneros.
Líderes da organização se perderam na montanha de dinheiro que logo se espalhou pelo mundo. A grana foi parar nos bolsos de alguns deles, foi investida em campanhas eleitorais, em compra de banco nos EUA e até na ditadura cubana.
Obstinado em reaver a fortuna roubada, um dos sequestrados, Jorge Born, se aliou a um dos sequestradores, Rodolfo Galimberti, na mais famosa versão sul-americana da Síndrome de Estocolmo. Como amigos, recuperaram uma parte ínfima do resgate. Como sócios, se atrapalharam em um negócio que acabou em escândalo policial e financeiro.
A seguir, ZH reconstitui o sequestro mais caro da história, tomando por base o livro de O'Donnell e outros três – Galimberti: de Perón a Susana, de Montoneros a la CIA (2000), de Marcelo Larraquy e Roberto Caballero, Firmenich (2014), de Felipe Celesia e Pablo Weisberg, e Doble condena: la verdadera história de Roberto Quieto (2011), de Alejandra Vignoles –, além de entrevistas com historiadores, reportagens de ZH e documentos do Movimento de Justiça e Direitos Humanos.
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BUENOS AIRES - QUINTA-FEIRA
19 DE SETEMBRO DE 1974
Oito da manhã. O espaçoso e potente Ford Falcon cinza seguia pela Avenida Libertador, principal acesso a Buenos Aires na zona norte. Ao volante, Juan Carlos Pérez, 34 anos, 12 como motorista. Ao lado dele, Alberto Bosch, o gerente do Moinho Rio da Prata, subsidiária do conglomerado Bunge & Born.
No banco traseiro, Juan Born, 39 anos, e seu irmão, Jorge Born, 40, futuro presidente da empresa. Liam os jornais do dia, com notícias sobre o assassinato do ex-vice-governador de Córdoba Atílio López. O crime foi atribuído à Aliança Anticomunista Argentina, a Triple A – grupo de extermínio de extrema direita. Com apoio militar, a Triple A era comandada por José López Rega, ministro do Bem-Estar Social, guru espiritual da presidente Isabelita Perón. El Brujo, como era conhecido, deixaria o governo no ano seguinte, acusado de desvios de recursos, e seria preso uma década depois.
Naquela época, o peronismo estava rachado, e os radicais de esquerda, como os montoneros, haviam voltado as costas para a presidente, indignados com a perda das rédeas do país – mergulhado em arrocho salarial, inflação de 300% ao ano e desabastecimento.
Quinze metros atrás do carro dos irmãos Born, dois seguranças com formação policial-militar em outro Ford Falcon escoltavam os empresários. Os Born só saíam de casa para trabalhar. A Argentina sofria uma onda avassaladora de sequestros (foram 150 em 1973). Entre os reféns, executivos de Coca-Cola, Swissair, Kodak e Peugeot. Seis em cada 10 dirigentes estrangeiros tinham abandonado o país.
Pelo gigantismo, a Bunge & Born também estava na mira. Os alvos iniciais eram o presidente, Jorge Born pai, 74 anos, e o vice, Mário Hirsch, 63. Mas foram descartados por causa da idade. Não resistiriam aos rigores do cárcere. O foco, então, se fixou nos filhos. Sem saber, Juan e Jorge já haviam escapado de duas tentativas de sequestro porque saíram de casa fora do horário habitual. A terceira não falharia.
Chamado de Operação Mellizas (palavra em espanhol para gêmeos bivitelinos), o sequestro estava sob a responsabilidade da Coluna Norte, cujo secretário-militar era Rodolfo Galimberti. A execução coube a Roberto Quieto, oficial do alto escalão montonero, antigo combatente das Forças Armadas Peronistas (FAP). A rotina dos Born foi estudada pelo serviço de inteligência montonero, do qual fazia parte o jornalista e escritor Rodolfo Walsh.
Convocaram 30 combatentes que não se conheciam e os dividiram em cinco equipes com tarefas distintas. O grupo recebeu instruções cinco dias antes, em um único encontro, num camping. No dia do sequestro, parte dos guerrilheiros foi levada ao local com olhos vendados para não reconhecer o percurso.
Os carros dos Born estavam a um quilômetro da Quinta de Olivos, residência oficial da presidência, quando se avistou no cruzamento da Avenida Libertador com a Rua San Lorenzo um cavalete com semáforo portátil, indicando uma escavação na tubulação de gás. Três "operários" acenavam bandeiras, obrigando os Ford Falcon a desviar à direita. No meio da quadra, na contramão, surgiram dois veículos. Um Dodge se atravessou na frente do carro da escolta. O veículo dos Born seguiu, mas foi abalroado por uma caminhonete Chevrolet. Disfarçados de policiais e armados com metralhadoras, 10 guerrilheiros simularam ação contra subversivos e gritavam:
– Comunistas filhos da puta!
Os seguranças não tiveram tempo de dar explicações. Foram rendidos e desarmados. O motorista Pérez e o gerente Bosch procuraram o botão de pânico, mas rajadas de tiros atravessaram o para-brisas. Os dois tombaram mortos. Juan e Jorge desceram do carro. Juan tentou correr, mas foi dominado. Os falsos policiais cobriram os rostos dos Born com capuzes e os jogaram dentro de um outro automóvel que arrancou em alta velocidade. Tudo havia ocorrido em um minuto e 45 segundos.
Os irmãos Born foram levados para os fundos de uma carpintaria, na periferia de Buenos Aires. Durante três meses o lugar havia sido preparado, com dois buracos de seis metros quadrados para esconder os reféns. Trancafiados nos cubículos, Juan e Jorge desconheciam o destino um do outro – não sabiam que estavam separados apenas por uma parede.
O lugar era escuro, abafado, forrado com chapas de poliestireno, e isolado para impedir qualquer contato. Cada cativeiro tinha só uma cama, uma cadeira e um pequeno bico de luz que permanecia quase o tempo todo desligado. Os irmãos vestiam camiseta e cueca. Com os rostos encobertos, os carcereiros abriam a porta apenas para entregar as refeições e um balde com água. A água servia para beber e para o banho.
E o balde, de penico. Os irmãos ouviram que a empresa era inimiga do povo, por isso, seriam submetidos a um julgamento popular. A sentença: pena de morte ou multa milionária. Prevaleceu a segunda opção. Além de ato político, o sequestro tinha o objetivo de bancar dívidas e engordar o caixa montonero. A organização precisava de dinheiro para montar bases, comprar armas, imprimir jornais e panfletos e pagar 1,2 mil combatentes.
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PAI DOS SEQUESTRADOS CORTOU
AS NEGOCIAÇÕES LOGO NO INÍCIO
A notícia do sequestro chegou rápido ao quartel-general da Bunge & Born, em Buenos Aires. Um sequestrador ligou para o presidente da companhia:
– Queremos US$ 100 milhões. Você entrega o dinheiro ou seus filhos morrem.
A quantia exorbitava qualquer resgate anterior – o mais alto fora de US$ 14,2 milhões, em abril daquele ano, pagos a guerrilheiros do Exército Revolucionário do Povo (ERP) pelo americano Victor Samuelson, gerente-geral da Esso na Argentina.
A resposta do patriarca dos Born foi curta e grossa:
– Vai à merda.
Born pai bateu o telefone e se negou a atender outras ligações. Não aceitava ser chantageado por terroristas e se recusou a chamar a polícia.
Enquanto isso, no cativeiro, Juan, deprimido, passava noite e dia deitado em posição fetal. Não queria se alimentar e xingava os guardas. Jorge era submetido a longas sessões de interrogatórios do tribunal revolucionário, gravadas em áudio e vídeo. Ele não se deixava abater. Varria a cela e arrumava a cama. Quando o balde estava sujo, virava de propósito, alegando descuido, e ganhava outro com água limpa. Para não enferrujar os músculos, se exercitava pela manhã e à noite por 10 minutos. Calculava o tempo contando a pulsação.
Ainda naquele setembro, Alfonso Margueritte, executivo da Bunge & Born, foi capturado por outra facção, o ERP. A maioria dos familiares de Juan e Jorge abandonou Buenos Aires – a mãe, as mulheres e os quatro filhos de cada um dos reféns se mudaram para Punta del Este, no Uruguai. Born pai mandou dizer que aceitava pagar US$ 10 milhões pela liberdade dos filhos. Muito aquém da quantia exigida, a contraproposta só serviu para irritar os terroristas, que cortaram contato.
Enquanto se aprofundava o desespero de Juan, Jorge percebeu que uma certa harmonia com os guardas seria a maneira de sofrer menos e fazer o tempo passar mais rápido. Aceitou ler publicações esquerdistas e jogar dama com os carcereiros. Ganhava cigarros e cartelas de palavras cruzadas que os guardas deixavam incompletas.
Sem saber se era dia ou noite, os irmãos nem perceberam quando 1974 terminou. Em fevereiro de 1975, os montoneros, revoltados com a postura de Born pai, que se mantinha irredutível, mataram a tiros Antonio Muscat, 52 anos, gerente da Bunge & Born. Na mesma época, sequestraram e assassinaram o cônsul dos Estados Unidos, John Patrick Egon. Na semana seguinte, outros dois executivos da empresa foram baleados quando saíam de suas casas.
Em março de 1975, a Bunge & Born pagou US$ 5 milhões ao ERP, e Alfonso Margueritte foi libertado. Saiu do cativeiro doente e morreu meses depois. Nessa época, Born pai recebeu uma carta do filho Jorge, relatando que Juan estava doente. Dias antes, os carcereiros haviam tirado Jorge do cativeiro amarrado em uma cadeira e fingido uma viagem. Colocaram os Born frente a frente, mas Juan sequer reconheceu o irmão. Um psiquiatra havia examinado Juan e alertado que o caso era grave.
Seis meses após o sequestro, começaram as negociações, intermediadas por Jorge e um advogado da companhia. Os montoneros baixaram o pedido de resgate de US$ 100 milhões para US$ 80 milhões, mas Jorge Born pai resistia. Dias depois, dispôs-se a pagar US$ 30 milhões pela liberdade de Juan. Os montoneros aceitaram, mas exigiam o dinheiro em moeda nacional e que fossem pagos outros US$ 30 milhões pela vida de Jorge. A companhia conseguiu o equivalente à metade. Os pesos deveriam ser entregues camuflados em caixas de vinho. Um gerente da companhia foi escalado para dirigir um caminhão com a fortuna. Rodou por vários pontos de Buenos Aires até abandonar o veículo em um local indicado. Os montoneros aceitaram receber a segunda parte em dólares. Teriam ajuda do embaixador de Cuba em Buenos Aires, que trocaria os dólares por pesos sem levantar suspeitas. Após receber o dinheiro, em 23 de março de 1975, os terroristas libertaram Juan em sigilo, sem que as autoridades soubessem.
Enquanto Juan abandonava o país, Jorge era trocado duas vezes de cativeiro. Apesar dos cuidados, um militante da comissão de finanças montonera foi capturado e torturado até contar o que sabia sobre o sequestro. Policiais invadiram vários esconderijos da guerrilha e apreenderam o equivalente a US$ 3,5 milhões em pesos. O episódio levou o líder máximo dos montoneros, Mario Firmenich, a se socorrer do governo de Fidel Castro. Os guerrilheiros comungavam da mesma ideologia, inclusive receberam treinamento militar em Havana, assim como no Líbano e na Síria.
MOVIMENTAÇÃO DO RESGATE PASSOU PELA
EMBAIXADA CUBANA EM BUENOS AIRES
"Caixas de vinho" foram enviadas para a embaixada cubana em Buenos Aires. Em malas diplomáticas (que não podem ser vistoriadas nas alfândegas), dólares foram despachados para Havana. A quantia enviada nunca foi confirmada. Teriam sido US$ 25 milhões.
Na ilha caribenha, o dinheiro ficou sob supervisão de uma tropa especial, responsável pelas relações do governo com guerrilheiros em outros países e depois transferido para a Checoslováquia, um dos países-irmãos da Cortina de Ferro liderada pela União Soviética, com a promessa de que retornaria aos poucos para o Banco Nacional de Cuba.
– De forma constante, tanto URSS quanto EUA apoiaram abertamente ou de forma dissimulada movimentos guerrilheiros que lutavam contra regimes amigos/aliados do rival – analisa, hoje, em entrevista a ZH, Enrique Padrós, doutor em História, especializado em ditaduras do Cone Sul.
Nesse meio tempo, a Bunge & Born providenciava mais dinheiro para libertar Jorge. Faltavam recursos na Argentina, e a solução foi arrecadar com outras empresas do grupo no Exterior, em sigilo absoluto e sem conhecimento do fisco. Mas dois empregados foram barrados desembarcando no aeroporto de Ezeiza com US$ 4,8 milhões nas malas. Após muita conversa, Born pai conseguiu impedir que o caso se tornasse público e que as malas de dinheiro voltassem para a Suíça, onde a Bunge & Born tinha uma financeira que movimentava valores do conglomerado.
A frustrada operação de pagamento deixou Jorge furioso porque adiava a solução do caso. Àquela altura, já havia trocado de cativeiro várias vezes e desconhecia os novos carcereiros. Para não perceber o caminho percorrido a cada mudança, era obrigado a tomar ansiolíticos que o deixavam tonto. Em abril de 1975, haveria eleição na província de Misiones. Os montoneros participavam com o Partido Autêntico – criado pela esquerda peronista naquele ano. Acreditavam na vitória, mas Jorge apostou com os guardas que fariam menos de 10% dos votos. Se estivesse certo, receberia uma dose diária de uísque. O Partido Autêntico ficou com 9,4% do eleitorado, e Jorge garantiu seu uísque. Só não sabia que havia apostado contra seu próprio dinheiro: a campanha fora financiada com parte do resgate de Juan.
Para começar a pagar pela liberdade de Jorge, a Bunge & Born juntou US$ 7 milhões. Entregaria em caixas de vinho na base aérea de Morón. Mas tudo saiu errado na estratégia montonera. O local estava lotado de policiais à paisana, pois a presidente Isabel Perón teria ali uma reunião no dia seguinte com o ditador chileno Augusto Pinochet. Um dos militantes escalados para receber a "carga" ficou doente. O substituto pertencia a outra coluna montonera, não sabia do sequestro, desconhecia a região e rotas de fuga, foi preso, e o pagamento não aconteceu.
Dias depois, o bar de onde os montoneros telefonavam para a Bunge & Born foi incendiado. Os episódios mostraram que Buenos Aires se tornara ambiente hostil para "os negócios", e os montoneros aceitaram receber o segundo resgate na Suíça. Pediram ajuda ao banqueiro argentino David Graiver, alinhado à causa, e que já os socorrera em momentos de aperto. Filho de imigrantes poloneses, Graiver era um audacioso empresário que, aos 35 anos, era dono de dois bancos e mantinha negócios nos EUA, na Bélgica e em Israel. Ele propôs uma parceria, e os montoneros aceitaram: seriam sócios de um banco americano, pelo qual pagariam US$ 12 milhões.
Em 12 de junho de 1975, usando documentos falsos, um graduado montonero viajou para Genebra e recebeu um caminhão lotado de dólares, estacionado em frente a um hotel por um representante da Bunge & Born. O montonero enfiou tudo em malas e foi para uma agência do banco UBS. Abriu uma conta em nome das empresas Calatanas Associadas S. A., alugou uma caixa-forte e deixou as malas. A Catalanas era uma firma de fachada, com sede no Panamá, criada dias antes.
À medida que se aproximava o momento de libertar Jorge, os guerrilheiros o mantinham quase todo o tempo com os olhos cobertos com algodão sob óculos escuros. Não deveria reconhecer onde estava, nem os últimos carcereiros. Mas, em 20 de junho de 1975, pôde ver o rosto de um sequestrador que identificaria mais tarde como Mario Firmenich. O líder montonero surgiu dizendo que a família Born tinha atendido todas as exigências e ele seria solto. O acordo incluía a publicação de um informe de página inteira pago pela Bunge & Born em grandes jornais – Le Monde (França), Washington Post (Estados Unidos), Corriere Della Sera (Itália) e The Guardian (Inglaterra). O texto criticava a posição da companhia e exaltava a luta da guerrilha contra o imperialismo na Argentina. A Bunge & Born também estava obrigada a adornar o saguão de entrada de suas fábricas com bustos de Perón e de Evita, além de distribuir US$ 1 milhão em alimentos em áreas pobres do país.
Firmenich entregou a Jorge um saco plástico com uma camisa branca, uma calça cinza, um par de sapatos e de meias. Era a primeira vez que usaria roupas depois de seis meses descalço e seminu. Era o traje que vestia no dia do sequestro, mas nem parecia: ficou grande nele, sete quilos mais magro. Os sapatos eram diferentes, e faltava o Rolex. Jorge reclamou, mas Firmenich disse que o relógio e os saltos dos sapatos foram desmontados, por precaução contra eventuais rastreadores.
Durante o cativeiro, Jorge rabiscou um caderno, espécie de diário, e escreveu cartas para Alberto Bosch, amigo de infância e gerente do Moinhos Rio da Prata. Bosch estava com ele no dia do sequestro. Jorge não sabia que as cartas nunca chegaram ao destino, muito menos que Bosch havia sido morto no ataque, assim como o motorista Pérez. Com frieza e sem rodeios, Firmenich deu a notícia a Jorge. Triste e enraivecido, Jorge rasgou suas anotações.
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> Caça ao dinheiro, reconciliações e escândalos de corrupção na sequência do sequestro dos Born
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OS PRINCIPAIS PERSONAGENS
Os Montoneros
Surgido nos final dos anos 1960, o grupo abarcou militantes de movimentos nacionalistas de extrema esquerda, grupos revolucionários armados, intelectuais, sindicalistas, religiosos e jovens de classe média fascinados pelo peronismo e que lutavam contra a ditadura militar. Com estrutura de partido político e hierarquia que lembra o militarismo, era dividido em atuação por áreas geográficas (chamadas de colunas), com conselho superior, secretaria de imprensa e de relações internacionais. Teve como símbolo um fuzil e uma lança de taquara (homenagem aos gaúchos primitivos que lutavam pela independência) cruzados. Abandonou temporariamente as armas em 1973, com a volta ao poder de Juan Domingo Perón, mas logo entrou em rota de colisão com o governo. No ano seguinte, mergulhou na clandestinidade. Deixou de existir no final dos anos 1980.
Jorge Born pai
Herdeiro de um dos fundadores da Bunge & Born, comandou o grupo durante duas décadas, a partir de 1956. Morreu em 1980, aos 80 anos.
Jorge Born
Diretor da Bunge & Born, ficou nove meses como refém dos montoneros, com quem negociou o resgate. Mais de duas décadas depois, aliou-se a um dos guerrilheiros para tentar recuperar o dinheiro.
Juan Born
Também diretor da empresa e sequestrado com o irmão, foi solto após seis meses de cativeiro com problemas psicológicos. Foi em seguida para a Europa.
Juan Domingo Perón
Comandou o país por quase 10 anos em dois momentos. Foi o mais popular dos presidentes argentinos. Morreu durante o segundo mandato, em junho de 1974.
Isabelita Perón
Assumiu o poder depois da morte de Perón. Governou por apenas nove meses. Foi derrubada pelo golpe militar em março de 1976 .
Mario Firmenich
Um dos fundadores e principal líder dos montoneros. Pelo sequestro e por duas mortes, foi preso, condenado e depois anistiado. Estudou Economia e é professor universitário na Espanha.
Rodolfo Galimberti
Secretário-militar da Coluna Norte dos Monteneros, foi um dos responsáveis pelo sequestro. Depois, rompeu com o grupo e se aliou a Jorge Born. Morreu em 2002.
José López Rega
Ministro, comandava a perseguição aos opositores antes do golpe militar. Deixou o governo acusado de desvios de recursos. Foi preso uma década depois. Morreu em 1989.
David Graiver
Banqueiro, se tornou sócio dos montoneros ao investir US$ 17 milhões obtidos nos sequestros na compra de um banco nos Estados Unidos. Morreu aos 35 anos em um misterioso acidente aéreo no México, em agosto de 1976.