A França vive um paradoxo: o governo socialista de François Hollande adere a uma típica medida liberal e entra em confronto com estudantes e sindicalistas, seus tradicionais apoiadores. Há cenas de tensão, como no caso dos ovos arremessados contra o ministro da Economia, Emmanuel Macron, na segunda-feira, ou, dias antes, protestos que se espalharam pelo país, coincidindo com uma greve ferroviária que impediu a abertura de escolas e comércio. O governo se preocupa especialmente com um evento que começou na sexta-feira e se estenderá até 10 de julho, a Eurocopa (torneio europeu de futebol).
A tensão se mistura ao temor de Hollande em relação a um eventual atentado terrorista durante a competição, enquanto sindicalistas planejam aproveitar a atenção mundial para promover mais protestos. A reforma mexe em temas caros aos movimentos sociais. Inclui mais flexibilidade às empresas para combater o desemprego de 10,2%, que afeta principalmente jovens (24%) – leia quadro ao lado com itens do "projeto de lei El Khomri", que leva o nome da ministra do Trabalho, Myriam El Khomri.
A rejeição ao governo aumenta. Pesquisas mostram Hollande com 15% de popularidade, faltando menos de um ano para as eleições de 23 de abril em que estaria habilitado a concorrer. Pesquisas mostram que 70% dos franceses se opõem à reforma. Chovem críticas a um presidente de centro-esquerda que falava em dar perspectivas a jovens e pôr fim ao desemprego.
Até mesmo entre os correligionários socialistas, Hollande e seu primeiro-ministro, Manuel Valls, sofrem contestações pesadas. São acusados de terem virado de lado, tornando-se mais favoráveis à classe empresarial.
Governo se justifica dizendo que quer baixar desemprego
A polêmica é intensa. Os defensores da reforma sustentam que, para reativar a economia do país e gerar empregos, deve-se manter a competitividade. Macron costuma alertar que o desemprego não cai abaixo de 7% há 30 anos e que outros países europeus "evoluíram" ao flexibilizar legislações trabalhistas. Os empresários reforçam o discurso governista ao dizerem que contratam menos do que poderiam por temerem que, quando o país estiver em momentos de recessão, terão dificuldades para demitir, em razão da legislação atual.
Analista internacional com formação em Direito, Deisy Ventura, professora da Universidade de São Paulo (USP), chama atenção para dois fenômenos, um político e outro social:
– É curioso como um governo de esquerda assume propostas da direita mais conservadora. Na área da segurança, já se percebia isso há algum tempo. Agora, nos direitos sociais. Outro ponto é que as crises facilitam a erosão desses direitos sociais. A crise econômica serve de desculpa para que isso ocorra.
Deisy sustenta que o "estado de bem-estar social" não pode ser responsabilizado pelos problemas econômicos. E lamenta que a Europa era modelo para a América Latina. Também sublinha a questão migratória como outra "desculpa" para a "direitização" até mesmo de partidos socialistas como o francês.
A reforma francesa mexe em pontos sensíveis para a esquerda, como a duração da carga semanal de trabalho de 35 horas e a flexibilização da demissão por razões econômicas. O líder da Confederação Geral do Trabalho (CGT), Philippe Martinez, diz que faz a França retornar ao século 19. O primeiro-ministro Manuel Valls rebate afirmando que são os críticos que pararam no século 19. O presidente Hollande sustenta que "a lei será promulgada, e os franceses a julgarão". Argumenta que tenta, com ela, cumprir a promessa eleitoral de reduzir o desemprego. As vozes a favor e contra se multiplicam na internet. "Ao aliviar o direito e os custos da demissão, a tendência é aumentar os empregos e melhorar a realidade em especial dos jovens", diz Delphine Granier, do think tank Génération Libre. Por outro lado, o economista Bruno Ducoudré, do Observatório Francês de Conjuntura Econômica, sustenta que "não há relação entre o desemprego e o direito trabalhista".
Governo teme efeitos da crise na Eurocopa
Em meio à tensão do desemprego, dos protestos, da onda migratória e das ameaças terroristas, a França é sede, desta sexta-feira até 10 de julho, da Eurocopa – o torneio europeu de futebol. Dez cidades do país terão jogos e deverão receber 2 milhões de aficionados, que se somarão aos torcedores locais, também em trânsito entre as cidades. O governo se preocupa. O primeiro-ministro Manuel Valls pediu que o país "não fique bloqueado" e que todos hajam com "responsabilidade".
Hollande não descarta haver atentados terroristas e teme que "a ameaça se mantenha por longo prazo". Foram destacados 90 mil policiais para garantir a segurança durante a Eurocopa. Um alerta foi feito, especialmente, em relação ao jogo entre Rússia e Grã-Bretanha neste sábado, em Marselha.
A imprensa descobriu os dados no notebook apreendido do líder dos responsáveis pelos ataques em Paris e Bruxelas, Salah Abdeslam.
Na noite de 13 de novembro de 2015, três grupos terroristas promoveram ataques em Paris e
Saint-Denis, nos arredores da capital. Três jihadistas fizeram ataques suicidas nas proximidades do Stade de France, onde ocorria uma partida de futebol entre França e Alemanha. Outro grupo atacou cafés e restaurantes no nordeste de Paris. Três terroristas tomaram reféns na sala de espetáculos Bataclan. Cento e trinta pessoas morreram.
À francesa
Entre os pontos mais sensíveis da reforma trabalhista proposta pelo governo francês estão a facilitação das demissões e o possível aumento da carga horária semanal
1) Bastará que uma empresa alegue durante três meses ter havido queda na movimentação, problemas financeiros ou mudanças tecnológicas para ter maiores facilidades nas demissões coletivas.
2) As indenizações passarão a ser de três meses de salários para empregados com menos de dois anos de casa (hoje são de quatro meses) até 15 meses (hoje são 27) para quem trabalhou mais de 20 anos na empresa.
3) A carga horária semanal de 35 horas, em tese intocável, poderia ser aumentada mediante acordos entre empregados e empregadores. Pode chegar a 48 horas, mas compensadas na semana seguinte.
4) As empresas poderão também modificar o contrato de trabalho, em acordo com o empregado, sem alterar a remuneração. Ou seja, seria possível alguém trabalhar mais sem ganhar mais.