Baleado duas vezes no desfecho sangrento da revolução da Ucrânia, Yuri Marchuk passa os dias na mais imaculada das alas hospitalares, observando pela janela da ordeira cidade alemã de Koblenz enquanto imagens da batalha se movimentam em sua cabeça.
Marchuk, 36 anos, que se descreve como nacionalista e pequeno empresário, está entre as várias dezenas de ucranianos enviados para quatro países europeus para se recuperar, física e mentalmente, dos ferimentos.
As memórias ganham vida diante da linguagem seca de um relato recente do governo interino de Kiev culpando o ex-presidente Viktor Yanukovych, o batalhão de choque e os suspeitos de serem assistentes russos pela violência que matou mais de cem pessoas na capital ucraniana em fevereiro.
Quem sobreviveu se mostrou uma testemunha importante dos eventos ocorridos entre 18 e 21 de fevereiro quando, segundo Marchuk, os manifestantes quase perderam o controla da Praça da Independência, a Maidan, antes de repelir a polícia de choque mesmo com a pontaria mortal de franco-atiradores que não podiam ser vistos. O derramamento de sangue levou três ministros do exterior europeus a negociar um acordo entre os manifestantes e Yanukovych, que fugiu algumas horas mais tarde enquanto seu governo desmoronava.
Marchuk e os outros feridos estão em tratamento em cinco hospitais na Alemanha, Polônia, República Tcheca e Eslováquia. Eles se dizem irritados por estarem longe da ação. Só lhes resta a esperança de que o sangue derramado para derrubar Yanukovych sirva, após 23 anos de independência instável e corrupção flagrante, para finalmente dar início a uma nova era na Ucrânia.
- Algumas pessoas na Maidan estavam irritadas com a corrupção, com os subornos, com a injustiça da polícia, com os juízes que podem ser comprados - , afirmou Marchuk. - Para muitos, era difícil aceitar que a população sobreviva de aposentadoria enquanto outros se sentam em privadas de ouro -
- Para todas as pessoas na Maidan havia um fator unificador, o 'dostalo' - , ele afirmou, repetindo três vezes a palavra em ucraniano para "nós não aguentamos mais".
Dmitri Herasimenko, de 28 anos, eletricista que trabalhava nos arredores da Maidan em Kiev e ia todos os dias à praça depois do trabalho, agora trata de sérias lesões internas e no ombro que, segundo os médicos em Praga, o manterão longe do trabalho por um ano. - Minha única esperança é elegermos as pessoas corretas para o governo desta vez - , ele afirmou durante a entrevista. - Não gente que rouba e depois foge. -
Embora os relatos estrangeiros sobre a inquieta Kiev muitas vezes relatassem cenas pacíficas com dezenas de milhares de pessoas tremulando bandeiras europeias, alguns dos feridos disseram que sempre foi claro para eles que a violência seria necessária para uma mudança real.
Vitaly Samoylenko, 37 anos, de Irpin, arredores de Kiev, participou da pacífica Revolução Laranja de 2004 que no fim das contas trouxe pouco alívio para os problemas crônicos da Ucrânia. - Eu sabia que dessa vez precisaríamos de força e que haveria sangue se quiséssemos nos libertar - , afirmou em Praga, um dia antes de ter alta e voltar a seu país. Ele recebeu tratamento para três ferimentos a bala nos braços e no peito, sofridos na Maidan em 18 de fevereiro.
Para Marchuk, a noite de 18 para 19 de fevereiro foi "a mais longa da minha vida". A polícia de choque avançou sobre os manifestantes, que puseram fogo nas próprias barricadas numa tentativa desesperada de confundir os agressores.
Quando a fumaça clareou ao nascer do dia, Marchuk ficou chocado ao perceber que "havia poucas pessoas na Maidan". À noite, a polícia de choque ficou "às cegas" ao não conseguir ver os alvos. Durante o dia, "era muito, muito assustador" porque o batalhão de choque poderia derrotar os manifestantes.
Evitando cuidadosamente perguntas sobre a chegada de armas roubadas de um depósito do governo em Lviv, cidade na porção ocidental do país, Marchuk afirmou que a Praça Maidan foi salva porque centenas de novos voluntários de três cidades naquela região contornaram os bloqueios nas estradas e chegaram de ônibus. Na época, organizadores em Lviv diziam estar enviando 600 pessoas por dia para Kiev. Assim, os defensores exaustos podiam comer e dormir enquanto os recém-chegados construíam barricadas para, na manhãzinha de 20 de fevereiro, se lançar contra as posições do batalhão de choque.
Afirmando ser de Khmelnitsky e líder de um "sotin" (centena), formação organizacional usada pelos manifestantes, Marchuk avançou por volta das 8h30. Ele foi baleado na perna direita e disse ter perdido muito sangue, mas continuou na Rua Institutska, principal cenário da carnificina naquela quinta-feira. Somente quando levou um segundo tiro, com uma bala que endureceu a perna esquerda, ele se arrastou para debaixo de uma proteção.
Ele foi carregado ao centro médico improvisado no vizinho Hotel Ukraina, depois para outro posto de primeiros socorros, de onde seguiu para um hospital. - Mais tarde, soube que muitas pessoas morreram por não conseguir assistência médica a tempo. -
Contrariando o conselho médico, Marchuk disse que se deu alta sozinho depois de receber uma tala na perna esquerda e bandagens na direita. Ele voltou à Câmara Municipal para descobrir o destino dos 35 membros de sua centena que se ofereceram como voluntários naquela quinta-feira. Dois foram mortos, 12 foram feridos e o resto estava bem.
De acordo com ele, dois dias mais tarde amigos enviaram uma ambulância que o levou ao hospital em Khmelnitsky. O pai, Nikolai, foi cirurgião na cidade, mas não ficou claro se essa conexão teve algum papel em enviá-lo para a Alemanha.
Voluntários - ucranianos ou com ligações na Maidan - ajudaram a selecionar e arrumar o transporte dos feridos pela Europa.
Ivo Dokoupil, da entidade de caridade Pessoas Necessitadas, de Praga, disse ter viajado a Kiev várias vezes durante os protestos. Depois da violência entre os dias 18 e 20 de fevereiro, ele e colegas cuidaram de aproximadamente 150 pessoas, muitas em apartamentos particulares, pois estavam com medo de serem presas - ou coisa pior - nos hospitais públicos. - A polícia entrava sem avisar e tirava pessoas das instalações médicas - , contou Dokoupil, citando testemunhas.
Ele afirmou ter selecionado, em conjunto com outras pessoas, 38 dos feridos levados para a República Tcheca. A maioria foi ferida em Kiev, mas três vieram de Khmelnitsky, onde uma manifestação em 19 de fevereiro descambou para a violência, matando duas pessoas e ferindo várias outras.
Dokoupil contou que ainda era informando de pacientes necessitando tratamento, até mesmo de Kharkiv, segunda maior cidade da Ucrânia, situada na região leste do país.
Embora Marchuk se sentisse agradecido à Alemanha pelo tratamento num dos melhores hospitais alemães, a instalação do exército em Koblenz, ele também se revoltava com o que considera uma aquiescência alemã e pequenas sanções diante da anexação da Crimeia pela Rússia.
- Os alemães estão acostumados a viver segundo regras exatas", ele disse apontando para a ala do hospital, a cidade e os belos vinhedos cultivados há séculos nos vales dos rios Reno e Mosela. "Isso não existe na Ucrânia. Se tivéssemos tais regras, não teria sido preciso fazer essa revolução - .
Tensão no leste europeu
Feridos em combate falam sobre a guerra na Ucrânia
Dezenas de ucranianos feridos em combates foram encaminhados para outros países europeus para se recuperarem
GZH faz parte do The Trust Project