Ele sente o cheiro da comida e se irrita com a demora. A esposa, Kefaya, contou que ele esperava que ela tornasse os quartos imaculados de imediato. Eles se casaram em novembro e ele já quer que ela faça tratamentos de fertilidade.
- Quero um filho ou filha - alguém que seja meu herdeiro, afirmou Salah, 47 anos, um dos 78 antigos prisioneiros palestinos libertados das prisões israelenses como parte das conversas de paz lideradas pelos Estados Unidos desde meados do ano passado.
- Muitas vezes sonhei com isso na prisão. Eu via essa casa e as crianças, brincando com seus brinquedos. Não quero dez filhos - dois são o suficiente. Quero lhes dar toda a minha energia.
Já se passaram sete meses desde que Salah foi recebido antes do amanhecer por uma multidão barulhenta em um vilarejo de quatro mil habitantes nos arredores de Nablus, centro financeiro palestino. Duas décadas atrás, ele matou Israel Tenenbaum, 72 anos, sobrevivente do Holocausto e segurança de um hotel a 32 quilômetros dali, em Netanya, atingindo-o na cabeça com uma barra metálica.
Para a filha de Tenenbaum, Esti Harris, a libertação somente serviu para reviver os anos de grande sofrimento por causa do pai.
- Será que ele viu uma pessoa vindo para cima dele? Será que ele sofreu durante aquela fração de segundo? Eu pensava nisso toda noite antes de pegar no sono, naquele homem atacando meu pai, ela questionou.
Demonizados como terroristas pelos israelenses e idolatrados como combatentes pelos palestinos, prisioneiros como Salah se tornaram um ponto de conflito nas problemáticas conversações de paz, cuja continuação depende da libertação de um quarto grupo. Em meio a um debate carregado, esses homens - 69 dos quais condenados por homicídio, 54 escapando da prisão perpétua - começaram a refazer as vidas interrompidas. Eles pretendem tirar a carteira de habilitação, conseguir o subsídio de US$ 50 mil concedido pela Autoridade Palestina para a construção de casas ou a abertura de empresas, enquanto procuram esposas e lutam para começar famílias.
Salah havia economizado mais de US$ 100 mil dos pagamentos mensais da Autoridade Palestina às famílias dos prisioneiros. Ele reformou e remobiliou a casa da mãe. Fez a terraplenagem do declive rochoso nos fundos e construiu um curral de 220 metros quadrados. Investiu numa casa de câmbio em Nablus em dezembro e, em fevereiro, adquiriu o primeiro automóvel, um Kia Pride 2007 prateado.
Porém, continua acordando às 5h, como fazia antes para a contagem dos prisioneiros. E prepara o café numa chaleira elétrica como a utilizada na cela. Na véspera do casamento, ele e um dos irmãos receberam telefonemas ameaçadores de um homem que se identificou como Moshe e falava hebraico.
- Ele me falou: Eu vou matá-lo, matar sua esposa e atirar em você e em toda a sua família. Sei onde você mora, em Burqa, e Burqa fica perto de Sebastia, relatou o irmão, Muhammad.
Os irmãos logo começaram a procurar uma noiva para Salah.
Ele tomou café com a filha de um velho amigo, mas notou que ela estava assustada. Depois, conheceu Kefaya Abu Omar, então com 30 anos, e cujo noivado terminara.
- Falei a ela que meu irmão viveu muito tempo na prisão. Se você o aceitar, terá de compreendê-lo. Ele dorme bastante, não é sociável com as pessoas. Pedi que ela o ajudasse a deixar de ser assim, contou Muhammad Salah.
Na celebração no dia anterior ao casamento, o noivo parecia estupefato, cheio de dinheiro pendurado por toda sua camisa, enquanto centenas de homens e meninos dançavam e gritavam slogans de libertação.
No dia seguinte, o casal - praticamente dois estranhos, com quase uma geração de diferença - teve sua festa com bolo e fogos de artifício.
Como os outros ex-prisioneiros, Salah precisa se apresentar às autoridades de segurança israelenses, primeiro a cada duas semanas; agora a cada dois meses. Na maioria das manhãs, ele vai até Nablus para escapar das fofocas da vila. Salah dirige de forma irregular, misturando os pedais do acelerador e do freio. Ele faz hora na casa de câmbio ou toma café com autoridades públicas.
Salah não pode ir além de Burqa e Nablus por um ano nem deixar a Cisjordânia durante dez anos.
- Estou ficando entediado, sentado sob um retrato enquadrado de si mesmo em uniforme quase militar com as divisas honorárias de general-de-brigada. - Quero viajar. Ver gente. Quero respirar ar puro, quer caminhar.
Os 78 prisioneiros libertados reclamaram à Autoridade Palestina que o subsídio de US$ 50 mil e os pagamentos mensais - Salah recebe cerca de US$ 1.800 - não são suficientes para comprar um apartamento.
Terceiro de seis irmãos, Salah se deu melhor do que a maioria dos outros homens libertados. Ele herdou terras e contou com os pagamentos dos prisioneiros.
Ficar sabendo da nova vida de Salah perturbou Harris, 56 anos, a filha da vítima, que trabalha como professora de educação especial.
- Se ele permanecesse anônimo, ficaria mais fácil, ela afirmou.
Porém, embora a maioria dos israelenses - e certamente a maioria dos parentes das vítimas - se oponha à libertação de prisioneiros, Harris falou em nome da família que se isso fizer progredir o processo de paz, todos nós apoiamos até mesmo a libertação desse assassino.
Pouco tempo atrás, em Netanya, aproximadamente 80 parentes de pessoas mortas em ataques palestinos cantavam que não iriam esquecer nem perdoar. O grupo marchou do shopping Hasharon, três vezes atacado por bombas, passou pelo Café London, onde pratos manchados de sangue foram deixados depois de uma explosão, em 2003, e chegou ao Park Hotel, local do massacre da Páscoa de 2002, que resultou em 29 mortos.
Eles não foram ao antigo Hotel Sironit, onde Salah matou Tenenbaum em 1993.
Morando perto da casa dos pais em Ein Vered, Harris não compareceu ao julgamento de Salah e até hoje não sabe seu nome.
- Não acredito que ódio e raiva trarão qualquer progresso. Eu estou pronta, talvez, para me sentar numa mesa diante dele, para ele me convencer que apoia a paz.
Salah, que estudou ciência política na prisão, criticou o Fatah, o partido no qual ingressou aos 16 anos, por ser fragmentado e a Autoridade Palestina por não ter estratégia.
Os palestinos têm de admitir que nossa revolução fracassou, ele afirmou, defendendo a desobediência civil, e não o uso de armas e tanques.
- Estou distante do conflito agora, Salah garantiu. - Já paguei um preço alto. Se amanhã acontecer uma terceira intifada, vou ficar sentado nesse sofá e acompanhá-la pela televisão.
Muqdad Salah tem pressa.