Foram 700 passos em linha reta do hotel em que estou até a Praça Maidan. O nome significa Independência, em ucraniano. O frio de 1°C, num dia de céu encoberto e neve fina, deu um toque melancólico à jornada. Não demorou muito, porém, para ficar claro que, antes de mim, a tragédia tinha caminhado pela Rua Institutskaya, no centro de Kiev.
A Institutskaya (em referência ao Instituto para Senhoritas Nobres, antiga escola do tempo dos czares) tem a beleza triste das ruas centrais das metrópoles do Leste europeu. Os prédios são escuros, as linhas são retas, o calçamento
Calçamento? Quem olha para baixo percebe que algo estranho ocorreu naquele lugar. Em vários pontos, os paralelepípedos foram arrancados.
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À medida que o caminhante se aproxima da praça, multiplicam-se os ramos de flores e as velas acesas em homenagem aos mais de 80 mortos do movimento de oposição dos últimos três meses.
Numa das esquinas, jaz um caminhão incinerado com lembranças dos mártires. É uma cena muito parecida às que assisti no entorno da Praça Tahrir, no Cairo, há apenas três anos. Neste novo século, todas as praças se parecem.
É difícil conter a emoção quando se entra na praça. Os sinais da luta estão por todos os lados. Mais de 80 pessoas morreram aqui nos últimos quatro meses num movimento que acabou unido pela exigência de afastamento do presidente Viktor Yanukovitch.
Os ucranianos caminham por entre as barricadas ainda erguidas, repletas de flores, cartazes e bandeiras amarelas e azuis. Em alguns pontos, soldados montam guarda junto a prédios, junto a fogueiras. Na foto, estou ao lado de um deles, Roman, que se diverte ao saber que sou do Brasil.
- América Latina? - é tudo que consegue dizer, sorrindo.
A Maidan cheira a fumaça, como um acampamento de campanha. O cheiro de queimado se desprende das fogueiras, das barricadas, dos edifícios - até o chão parece ter sido chamuscado. A praça não é regular como parece nas fotos, mas se situa numa depressão do terreno. Em dias normais (o que são dias normais na Ucrânia de hoje?), este é um lugar de tráfego intenso como qualquer ponto central de metrópole. Agora, tornou-se um lugar de peregrinação e culto. E emoção.
Esta senhora, Zinaida Dmitrovna, chora pela simples visão do que parece um campo de batalha.
Zinaida não tem parentes entre os mortos, mas acusa, em ucraniano:
- Putin fez isto.
No centro da praça, um palanque ainda abriga alto-falantes, telões, bandeiras e cartazes. Um sacerdote da Igreja Ortodoxa faz um discurso entremeado por uma prece. Os símbolos religiosos estão presentes por todos os lados, ainda que não sejam dominantes.
Há centenas, milhares de pequenos santuários em homenagem aos mortos. Alguns dos caídos são retratados em fotografias com uniforme militar. Outros aparecem com as famílias, mais de um com crianças recém-nascidas nos braços. A maioria é de homens.
Os ucranianos são extremamente caprichosos. Em meio ao que foi o caos, começam a ordenar um cenário de lembrança. Equipes reparam os sinais de trânsito destruídos. Um militar uniformizado que caminha à minha frente, com andar vacilante, para e ajeita cuidadosamente com o pé um papelão que serve de base a uma coleção de ramalhetes e fotos. É um gesto que estamos acostumados a ver em casa, mas não na rua. E não em meio a uma revolução.
Apesar de tudo, as pessoas na Praça Maidan têm consciência de que a luta, ainda que momentaneamente vitoriosa, ainda não terminou. Converso com Elena Nekrassova, 25 anos, instrutora de ginástica, casada, uma filha de cinco anos. Ela parece muito comovida. Não esteve aqui nos dias de maior violência. Com os olhos azuis fixos na câmera, suplica:
- Ajudem a Ucrânia. Queremos que nosso país permaneça unido.
O que fazer num lugar como Maidan? Sem encontrar resposta, apanho uma pedra chamuscada no chão. Os grandes monumentos cabem no bolso.