Responsável pelo trabalhos de pesquisa da Human Rights Watch (HRW), uma das mais respeitadas organizações não governamentais internacionais, Iain Levine é um experto em crises humanitárias, com experiência de campo de mais de 10 anos no Sudão e em Moçambique. Fluente em português, Levine está em São Paulo para o lançamento do Relatório Mundial de Direitos Humanos 2014 da HRW, que ocorre nesta terça-feira pela manhã, concomitantemente a eventos em outras dez cidades no mundo. O ato faz parte também da abertura do escritório da HRW no Brasil, o primeiro da América Latina, dirigido pela advogada Maria Laura Canineu.
Levine critica o fato de a comunidade internacional ter agido de forma rápida sobre o uso de armas químicas na Síria, mas não em relação ao uso de armas convencionais. Aponta medidas urgentes para levar o mínimo de ajudar humanitária no país que está há quase três anos mergulhando em uma guerra civil que já matou mais de 120 mil pessoas. Apesar de a Síria ser a situação mais degradante entre os países que foram sacudidos pela Primavera Árabe, ele lamenta retrocessos políticos em toda a região. Este ano, o relatório dedica importância especial às revelações do ex-técnico de inteligência Edward Snowden sobre os programas secretos de vigilância eletrônica em massa do governo americano. Para Levine, a atuação da NSA e seus parceiros configuraram uma das violações mais importantes aos direitos humanos constatadas no ano que passou.
Confira trechos da entrevista concedida por telefone nesta segunda-feira a Zero Hora:
Zero Hora - Quais são as constatações da Human Rights Watch sobre o conflito que mais se deteriorou em 2013, foi o da Síria?
Iain Levine - O conflito na Síria se intensificou em 2013. Por parte do governo, vimos o uso indiscriminado de armas químicas. Pelo lado dos grupos rebeldes, também temos um comportamento cada vez pior, em termos de crimes de guerra, execuções, uso de força indiscriminada, sequestros e outros crimes e, em tudo isso, apontamos a falta de uma resposta internacional coerente a uma situação que está piorando. Em primeiro lugar, a comunidade internacional reagiu muito rapidamente e com coesão ao uso de armas químicas. Esse é um fato positivo, mas as armas químicas mataram um percentual muito pequeno da população se compararmos com as armas convencionais. E nisso estamos devendo uma resposta coerente e unificada por parte da comunidade internacional. O Conselho de Segurança da ONU está muito dividido porque a Rússia e a China estão protegendo a Síria, e o caso da Síria não foi encaminhado ao Tribunal Penal Internacional até agora. No caso da situação humanitária, há milhões de pessoas que precisam de ajuda humanitária para poder viver, mas vimos que o governo da Síria conseguiu pôr obstáculos a isso. Em muitos casos, a população está vivendo sob o controle dos grupos rebeldes e a comunidade internacional não foi capaz de interceder para que cada civil, esteja onde estiver, tem o direito de receber apoio humanitário porque apoio humanitário não tem nada a ver com questões políticas. Portanto, é uma situação bem difícil, é um situação muito grave ao nível humano e uma resposta internacional bastante fraca e inadequada.
ZH - Diante da resposta internacional fraca, a negociação de um cessar-fogo é o mais urgente ou há outras ações que poderiam ser negociadas neste momento?
Levine - Vai começar a conferência de Genebra II, mas temos pouca esperança de que dará resultados. O que achamos que deveria ser feito? Há três ou quatro pontos essenciais e muito urgentes. Tem de haver uma insistência com o governo e com os rebeldes de que, por mais que continuem lutando, eles devem lutar de uma forma que respeite as leis internacionais da guerra porque têm de proteger a população. Segundo, há milhares de pessoas presas, sofrendo tortura por motivos políticos, e elas devem ser libertadas. E a terceira questão é a do acesso humanitário. Tem de haver um entendimento por parte de todos que estão envolvidos nesta guerra de que todos os civis, seja quem for, tenham o direito de receber apoio humanitário, sobretudo as mulheres e as crianças. A situação que neste momento temos é que a entrega de ajuda está bloqueada em muitos lugares. São os três pontos mais fundamentais em termos de direitos humanos.
ZH - Após três anos do início da Primavera Árabe, a situação dos direitos humanos nos países que passaram por esses movimentos evoluiu?
Levine - O exemplo positivo é a Tunísia. A Tunísia está mostrando que é possível eleger um governo islâmico moderado, que respeita os direitos humanos. Recentemente, uma nova Constituição foi aprovada pela população, que assegura garantias sobre a proteção de direitos humanos, até a proteção dos direitos humanos das mulheres e a necessidade de igualdade de gênero. Ainda enfrenta muitos desafios, mas podemos dizer que a Tunísia deu passos positivos, de se louvar. Infelizmente, os passos negativos são maiores do que os passos positivos. No Egito, estamos vivendo uma situação muito difícil, com a derrubada do presidente eleito. O que vimos desde quando o Exército voltou ao poder é que o governo militar começou atacando e reprimindo membros da Irmandade Muçulmana e, em alguns casos, até manifestantes pacíficos foram mortos por ações extremamente violentas da polícia militar. Agora, porém, a situação está piorando no sentido que a repressão não é dirigida só a islâmicos, mas também a ativistas seculares, a jornalistas, ativistas de direitos humanos. Existem vários casos de violações do direitos humanos, violam o direito à livre expressão. É uma situação cada vez mais deprimente, cada vez mais preocupante. No Bahrein, a situação também não está melhorando, e a situação da Líbia também está piorando. No caso da Líbia, não é uma questão de um governo mais repressivo ou autoritário, mas a questão de um governo com cada vez menos poder. As milícias estão mostrando cada vez mais poder no país, e o governo tem cada vez menos capacidade de governar. Então, o problema não é de um governo autocrático, mas de um governo extremamente fraco. Semanas atrás, o primeiro-ministro foi raptado durante algumas horas por grupos armados, mas o fato de nem o primeiro-ministro estar protegido é preocupante. Para a região, em geral, 2013 não foi um ano positivo.
ZH - As medidas anunciadas pelo presidente americano Barack Obama na sexta-feira passada respondem às críticas que se faz aos programas da NSA?
Levine - As revelações de Edward Snowden foram uma das questões mais importantes para os ativistas de direitos humanos este ano e para todos os que se preocupam com os direitos humanos. O que Snowden revelou sobre a vigilância em massa da NSA é extremamente preocupante para o direito à liberdade e o direito à privacidade. Queria dizer que o Brasil jogou um papel bastante positivo, sobretudo na liderança que mostrou na Assembleia Geral das Nações Unidas. O Brasil junto com a Alemanha assinou uma resolução sobre a liberdade de expressão e direito à privacidade na internet, que foi um passo extremamente importante, que mostrou que o seu comportamento não é aceitável a nível internacional. O discurso do Obama foi positivo no sentido de que aceitou que a situação não é viável e reconheceu uma oposição muito forte ao comportamento da NSA, mas ao mesmo tempo, as propostas não são suficientes, e nem deu detalhes suficientes para se entender exatamente o que se pretende fazer. Ele falou sobre o uso de metadados, o controle dos metadados que são colhidos em massa pela NSA, mas não propôs novos limites sobre o recolhimento dos metadados. Achei a manifestação da presidente do Brasil bastante semelhante à nossa. Ela diz que o importante agora é acompanhar de perto a implementação das medidas para entender exatamente o que Obama está propondo. Ainda falta muito. A questão de fundo mesmo nisso tudo é o fato de que a nossa capacidade tecnológica se desenvolveu tão rapidamente, que as proteções oferecidas pela lei foram ultrapassadas.
ZH - O presidente russo Vladimir Putin anunciou anistia para cerca de 20 mil prisioneiros políticos, mas ainda há um grande número deles na Rússia. Esse gesto demonstra disposição de melhorar a situação dos direitos humanos no país?
Levine - A nossa análise é bastante negativa. O que notamos é que a repressão à sociedade civil e aos opositores do governo continua. Isso foi uma onda de repressão iniciada em 2012 e prossegue. Ainda por cima, as novas leis de 2013, que restringem os direitos da população LGBT, além da liberdade de expressão de todos, são bem preocupastes. Quando vimos alguns atos por parte do presidente russo, como a libertação de Mikhail Khodorkovsky, ou a libertação das mulheres da banda Pussy Riot, para nós, isso não demonstra uma fase mais liberal, uma fase mais tolerante. Ele está mostrando que tem o poder absoluto e vai libertar quem quiser quando quiser e também vai prender quem quiser, quando quiser. Na nossa análise, isso está piorando e sentimos isso na pele. Temos um escritório em Moscou há mais de 20 anos e, para o nosso pessoal na Rússia, a situação está difícil devido à repressão às ONGs, sobretudo às ONGs que criticam a conduta do governo. Para os jogos olímpicos de inverno em fevereiro, não falamos de boicote nem nada disso, mas queremos, com a atenção global que os jogos trazem, alertar para a repressão e aos abusos.