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Não é fácil ser burro hoje em dia.
Para começar que há o problema da imagem, mas essa é coisa antiga; ultimamente há outras intromissões mais modernas interferindo no papel antiquíssimo do animal até mesmo aqui, nas terras altas do nordeste de Portugal, onde há séculos eles ajudam os agricultores a lavrar a terra e carregar peso.
Depois de décadas de negligência e por que não, má interpretação o destino do burro começa a se parecer com o dos humanos dessas partes da Europa, ameaçados pelo declínio da população e dependente dos subsídios da União Europeia para sobreviver.
Em época de austeridade, os animais também foram levados de roldão no debate que decidirá até onde deve ir o bloco para manter as regiões de cultivo, que já enfrentam cortes no apoio financeiro. A ajuda deste ano é de US$78 bilhões, o equivalente a 43 por cento de seu orçamento total, mas os gastos agrícolas devem cair para US$68 bilhões/ano até 2020.
Desde 2003, o burro de Miranda, grandão e dócil, que tem o nome da região onde vive, Tierra de Miranda, é considerado uma espécie ameaçada de extinção. Com manchas brancas em volta dos olhos e um pelo grosso que vai caindo conforme envelhece, ele vem perdendo espaço para o trator e outros equipamentos modernos.
E uma vez que os jovens vão para as cidades, também se veem ameaçados porque os agricultores estão ficando muito velhos para cuidar deles.
- Os animais eram vistos na maioria das estradas, mas já não é mais assim - , afirma Filomena Afonso, diretora do Departamento de Pesquisa de Genética Animal do Ministério da Agricultura português, que calcula que a população de asininos caiu 75 por cento em relação aos anos 70.
Até pouco tempo, a extinção do burro de Miranda parecia inevitável, afirma Miguel Nóvoa, diretor de uma associação que mantém 140 espécimes divididos em dois abrigos, um para criação e outro para animais muito velhos ou que foram abandonados.
Graças à ação dos conservacionistas, que usam o subsídio nacional e da UE para incentivar a reprodução dos Mirandas, a população se estabilizou por volta 800. Os agricultores, aliás, também podem se inscrever para receber o mesmo benefício ? US$230/ano por cada animal ? que os convenceu a manter os burros, apesar de já terem perdido espaço como mão-de-obra na lavoura.
Se não fosse por esse recurso, - não faria sentido, em termos econômicos, mantê-los, por mais que eu goste deles - , explica Gonçalo Domingues, um agricultor que possui dois Mirandas; já Camilo da Igreja vendeu os dois que tinha em outubro, depois que uma cirurgia de quadril o deixou muito fraco para tomar conta deles.
Na verdade, a um custo de US$650/ano, não vale a pena, em termos econômicos, manter um burro, mesmo com subsídio. - Os produtores mantêm os animais por amor e não por vantagens financeiras - , afirma o veterinário Javier Navas, que está preparando sua tese de doutorado em cima dos animais para a Universidade de Córdoba, na Espanha.
Para os conservacionistas, eles continuam sob ameaça de extinção, não só no sul da Europa, mas no mundo ocidental.
- Ninguém tem consciência de que a espécie está seriamente ameaçada na Europa inteira - , diz Waltraud Kugler, diretor de um projeto que se desenvolve na Fundação SAVE, uma organização de conservação animal com base na Suíça.
Segundo a lista da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, há 53 raças no continente, incluindo a Rússia e algumas das antigas repúblicas soviéticas; dessas, a fundação de Kugler calcula que 30 estão ameaçadas, com populações menores que mil cabeças.
Ele diz também que não ajuda muito o fato de o burro sofrer com a má reputação, que não mudou muito mesmo com o estudo dos cientistas. - O burro é visto como um animal estúpido de gente pobre e é difícil de tirar isso da cabeça das pessoas. -
Mesmo no norte do continente, onde são mantidos como animais de estimação, são mal-interpretados, conta Kugler, porque geralmente são mantidos nos campos, cuja grama não é boa para sua digestão e o solo, macio demais, prejudica seus cascos, destinados a suportar terrenos rochosos.
- A sociedade moderna se esqueceu completamente daquilo que tornou o burro um animal único, que se originou no deserto e está acostumado a terrenos difíceis e a pouco alimento - , completa Kugler.
Essas características tornam o Miranda perfeito para as terras altas portuguesas. Ali se fala o mirandês, dialeto reconhecido oficialmente por Portugal, mas a região muitas vezes parece ter parado no tempo. Uma senhora viúva, vestida de preto dos pés à cabeça, disse usar o animal porque ninguém em sua família sabia ler ou escrever e, portanto, ninguém podia ter carteira de habilitação.
Por outro lado, Orlando Vaqueiro, prefeito socialista encarregado de duas aldeias da região, Paradela e Ifanes, confessa que em termos puramente econômicos, - a verdade é que o subsídio não resolve nada -
- No entanto, é necessário para manter as tradições. O lado ruim é que todo mundo acaba dependendo inteiramente dele, o que mata o espírito de inovação e não estimula o desejo de modernização ou mesmo de expansão da produção. -
Mesmo com o fenômeno do êxodo do campo para a cidade que afeta não só a Europa como praticamente o mundo todo a vida rural tradicional, da qual o burro faz parte, vem recuperando o interesse dos jovens, principalmente os que estão passando dificuldades na Espanha e em Portugal.
Luis Sebastião, policial militar de 22 anos, disse que não se importa em fazer a viagem de ônibus de oito horas de Lisboa, onde trabalha, para passar os fins de semana na terra natal, em Miranda, onde pretende viver depois de se aposentar.
- Tenho muita sorte de ter um emprego em Lisboa, mas que vida eu vou levar depois que tudo acabar? - , ele questiona. - É aqui que eu me sinto em casa, ao lado dos burros e de tudo o que torna esse lugar tão especial. -