São tão poucas as esperanças para quem já perdeu tudo, que vale se lançar ao mar mal sabendo nadar. Esse foi o destino de Bashar, 41 anos, um sobrevivente da guerra síria que passou 24 horas amontoado com mais 499 desesperados no convés de um velho pesqueiro na esperança de alcançar Lampedusa - uma pequena ilha no sul da Itália, de águas paradísiacas. Quando o motor parou, na noite de 3 de outubro, e a embarcação precária foi a pique, Bashar e outros 141 sírios, eritreus e somalis foram retirados com vida de uma das maiores tragédias com clandestinos em busca de refúgio na Europa. Ainda assim, os emigrantes continuam chegando a mancheias no porto das tragédias. E, para os que não perecem na travessia, a nova vida está sujeita a autoridades atordoadas com os visitantes indesejados. Bashar só sonha em acordar onde "tudo esteja no mesmo lugar".
Bashar se agita na cadeira. Do lado de fora de um café na ilha italiana de Lampedusa, poderia usar o computador emprestado para mandar notícias aos familiares. Dizer que sobreviveu ao naufrágio que traumatizou toda a Europa matando 369 migrantes em 3 de outubro é inútil. A mulher, com quem conhecera a Itália durante a lua de mel, em 2007, engrossa a lista de 115 mil vítimas da guerra entre rebeldes e o regime sírio. Os pais morreram antes que o conflito eclodisse. Só lhe sobrou a esperança de estabilidade longe de casa.
Na sexta-feira, em uma megaoperação da guarda costeira italiana, quatro embarcações, com mais de 700 emigrantes, foram interceptadas. É o primeiro passo em direção a uma melhor assistência a essas pessoas, que, fugindo de traumas, correm o risco de encontrar traumas ainda maiores. Mas não é o suficiente. Entre janeiro e setembro passado, 30,1 mil imigrantes chegaram à Itália, atravessando o Mar Mediterrâneo em embarcações vindas da África do Norte. Os maiores grupos são formados por sírios (7,5 mil), eritreus (7,5 mil) e somalis (3 mil). A Síria e a Somália vivem longas guerras civis. Na Eritreia, cidadãos são vítimas de perseguição política ou desde crianças são usados como soldados em milícias. A Ilha de Lampedusa, ponto mais ao sul da Europa, tem fama de acolhedora aos estrangeiros. Mesmo acolhedores, os 20 quilômetros quadrados, nos quais vivem 6 mil habitantes, não têm espaço para abrigar tantos traumas.
- Eu fugi da morte. Não esperava encontrá-la na minha frente de novo - conta Bashar a Zero Hora, em um inglês pausado, por Skype, com auxílio de uma representante da agência da ONU para refugiados.
"Todos se afastaram e o navio virou"
Bashar era um entre os 10 sírios que viajaram em um jipe de Hama, a norte de Damasco, até a Líbia para o embarque. Cada um dos migrantes pagou US$ 1 mil pela travessia por terra, mais US$ 1 mil pela passagem de barco. Dentro do jipe, caso respirassem um pouco mais alto ou se atrevessem a falar entre si, eram golpeados com um cano de metal. Um roxo na maçã do rosto moreno de Bashar começa a amarelar, mas ainda revela a violência.
Os atravessadores prometiam uma viagem confortável, na medida do possível, mas que já começou traumática. As mães forçavam as crianças a engolir remédios para dormir.
- Ficávamos todos grudados, em pé, sem poder nos mexer. Havia apenas um banheiro no barco, mas era impossível usá-lo. Não havia como chegar até ali. Quem não conseguia se segurar fazia suas necessidades nas calças ou em uma garrafa.
Nas embarcações clandestinas, os capitães, muitas vezes, sabotam os motores dos navios antes de chegar à costa - isso os torna incapazes de manobrá-los, para que as embarcações sejam consideradas "em situação de perigo", devendo ser guinchados até um porto. Superlotados, os barcos correm o risco de virar a qualquer momento. No que levava Bashar, quatro pessoas foram eleitas para controlar os movimentos dos 500 passageiros. Qualquer movimento brusco poderia causar um desastre - o que, de fato, aconteceu.
- O motor começou a falhar, e o capitão disse para atear fogo um cobertor (na tentativa de chamar a atenção de outros barcos). Então, todos se afastaram e o navio virou.
Bashar chora um minuto inteiro diante do computador. Sufoca o choro. Resgatado pela guarda costeira, se sente inconformado e sofre com a perspectiva de ficar refém das autoridades na Itália. Engenheiro de formação, aprendeu o básico de alemão na esperança de conseguir trabalho na maior economia da Europa.
- Preferia voltar para a Síria. Não é na Itália que eu quero ficar. Estava confiante em conseguir chegar até a Alemanha, mas não sei.
"As pessoas na Síria não têm mais esperança"
Vencido o Mediterrâneo, a maioria enfrenta uma longa espera pelo veredicto sobre o pedido de asilo, cuja responsabilidade é do país de chegada, além de sentir na pele o preconceito entranhado nos moradores de locais menos acolhedores que os habitantes da ilha, solidários ao drama.
Bashar e outros sobreviventes agora iniciam outra jornada ingrata. Antes de superarem o luto, serão investigados pela promotoria por imigração ilegal - as primeiras audiências ocorreram na última semana em Agrigento, na Sicília (região à qual Lampedusa pertence). Se confirmada a ilegalidade, poderão ser multados em mais de 5 mil euros.
- A cobrança desse tipo de multa coloca o governo italiano na mesma ala dos transportadores de clandestinos, contribuindo mais ainda para a exploração e extorsão dos imigrantes - diz Flavio di Giacomo, representante da Organização Internacional para a Migração (IOM, na sigla em inglês) na Itália.
Levado ao único centro de recepção a imigrantes em Lampedusa, Bashar prefere dormir na rua. O local, uma espécie de galpão, comporta 250 pessoas - há mais de mil agora. Em tese, os imigrantes não podem circular fora das instalações, mas, dada a precariedade, os vigias fazem vista grossa. A pacata ilha não acalma o sírio, que encara o futuro com a mesma desesperança com a qual lembra do país natal:
- É guerra. Não há comida, não há lar e é perigoso. Não queria fugir porque pensei que as coisas se acalmariam, mas não parece que isso irá acontecer. As pessoas na Síria não têm mais nenhuma esperança. Enquanto isso, na cúpula de líderes União Europeia, o bloco tenta encontrar uma resposta às cobranças de corresponsabilidade com o morticínio.
Para que a tragédia não se repita
O problema da imigração deve ser abordado, segundo o presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, em três frentes: prevenção de naufrágios, proteção das fronteiras e solidariedade para com os países de origem e de trânsito. Essa é a intenção, mas mudança profunda só poderá ocorrer após as eleições do Parlamento Europeu, em maio, se os novos membros debaterem uma reforma da política migratória, em particular o direito ao asilo, que divide profundamente os países do norte e do sul do bloco. Mas isso parece difícil, já que 24 dos 28 membros da UE rejeitam reformar as políticas de asilo.
Até lá, o Mediterrâneo continuará a ser o porto dos sonhos - de Bashar e de tantos outros.