A despeito do clima, durante o dia todo é possível ver uma multidão de pessoas nas escadas da Igreja de Sainte Agnès. De lá, elas observam uma estátua de Jesus, com os braços abertos com se abençoasse o pesadelo que se encontra por trás de uma cerca alta e coberta com plástico preto, onde pode-se ver uma série de placas com avisos da polícia.
Semanas se passaram desde que um trem de vagões-tanque desgovernado - que ficou conhecido como "trem fantasma" - descarrilou e explodiu na cidade, incinerando boa parte do centro e matando ao menos 42 dos 6.000 habitantes locais. O fogo já se apagou há muito tempo e as ruínas já estão frias, mas em uma clara indicação da gravidade do desastre, o processo de descontaminação - em uma escala nunca vista no Québec - apagou poucos traços da destruição até o momento.
A longa cerca erguida pela polícia divide a cidade. Longe do metal, o odor de petróleo bruto ainda infesta o ar. As folhas e galhos de árvores a várias quadras do local da explosão estão marrons e curvados. Nas macieiras, as frutas estão verdes de um lado e queimadas do outro. A cobertura de vinil de algumas casas e apartamentos está do mesmo jeito: cheia de bolhas e rachaduras do lado do fogo, mas aparentemente intocada do lado contrário.
Porém, dos degraus da igreja a vista é muito mais inquietante. A biblioteca municipal e boa parte da rua principal não passam de uma faixa de entulho chamuscado, cinzas e uma sopa tóxica de petróleo, água e espuma de extintor de incêndio. Alguns prédios coloridos de madeira, inclusive um com torres e batentes adornados, se mantiveram surpreendentemente intactos em meio ao negrume da destruição.
A explosão e o fogo renovaram um velho debate sobre os riscos para o meio ambiente e para as pessoas durante o transporte de grandes quantidades de petróleo por trem ou oleoduto. Nos extremos norte e sul da zona do desastre, os efeitos do acidente foram mais profundos.
No grande lago que dá nome à cidade, barragens de contenção manchadas de petróleo parecem estar em uma batalha fadada à derrota. As ripas de plástico dos bancos colocados na beira d'água derreteram, deixando apenas as estruturas de metal. Nas cinzas do que parecia a garagem de uma família, o quadro e os aros derretidos de uma bicicleta mostram o caminho percorrido pelo petróleo incandescente até chegar ao lago.
Mais ao norte encontra-se o local onde o trem descarrilou. A piscina, o ginásio e o rinque de gelo do complexo poliesportivo da cidade servem de abrigo para dezenas de caminhões tanque trazidos para retirar os 7,6 milhões de litros de petróleo bruto vindos da Dakota do Norte que as autoridades acreditam ter vazado do trem.
O extremo norte do centro da cidade foi substituído pelo mar negro dos detritos derretidos de 72 vagões-tanque que empilhados tinham a altura de um edifício de três andares, muitos dos quais com um dos lados explodidos como se fossem fogos de artifício gigantescos. O ferro derretido de um dos lados de um contêiner estava dobrado como se fosse feito de tecido.
Enquanto os trabalhadores continuam a recolher os detritos, um processo que algumas autoridade creem que levará meses para ser concluído, o Lac-Mégantic vive no limbo.
- É difícil retomar vida normal. Tentamos continuar nossa vida, mas é difícil, pois sempre pensamos nisso - afirmou Christine Poisson, professora primária.
Sob a paisagem catastrófica, ficam as ruínas do Musi-Café, a balada mais popular da cidade, que se tornou o principal foco da tragédia quando o trem da "Montreal, Maine and Atlantic Railway" chegou à cidade à 1h15 da manhã do dia seis de julho. Os clientes da casa foram as maiores vítimas do trem.
Guy Ouellet, que trabalha em uma fábrica de portas, afirmou que o Musi-Café ainda estava cheio quando ele deixou a esposa, Diane Bizier, e a sobrinha no local por volta da 1h00 da manhã.
Enquanto observa a certidão de óbito da esposa, na qual a causa exata da morte consta como "sob investigação", na mesa de jantar de sua casa, Ouellet afirmou que a falta que ela faz é ainda maior pelo fato de que ambos trabalhavam juntos.
- Ela estava ao meu lado o tempo todo; ela era minha vida - afirmou Ouellet, um dos principais querelantes na ação coletiva contra a ferrovia e diversas outras partes envolvidas.
Ouellet está entre as pessoas que se reúnem nos degraus da Igreja de Sainte Agnès quase todos os dias. Do lado de dentro, o local se tornou o memorial da cidade. Ao lado de flores, fotos e lembranças dos mortos, há diversos corações de cartolina coloria com mensagens escritas à mão. Entre eles havia a cópia de um pôster comemorando o sucesso do time jovem de hóquei no campeonato regional do ano passado, com a mensagem "Au Revoir Professor, Para sempre em nossos pensamentos - Oli", escrita de caneta preta na margem do papel.
Agora, os habitantes da cidade falam sobre as questões que precisarão encarar. Embora boa parte do petróleo derramado tenha sido queimado no fogo e nas explosões, a contaminação do lago, do rio e do solo é uma grande preocupação.
Outros se preocupam com o custo disso tudo. Apesar das promessas da ferrovia de que iria cuidar das despesas ligadas ao acidente, a prefeita Colette Roy-Laroche afirmou recentemente que a cidade precisou bancar a conta de quatro milhões de dólares de três empresas de descontaminação contratadas pela "Montreal, Maine and Atlantic", que pertence à Rail World of Chicago, ou então os serviços seriam interrompidos.
Os correios, um banco, uma farmácia e uma loja de roupas já foram reabertos em outro local da cidade, mas é impossível saber se outras empresas poderiam esperar anos até que tudo fosse reconstruído.
Outras preocupações predominam. A falta de empregos sempre dificultou a permanência dos jovens. Jean Labbé, dono de um estacionamento próximo à igreja, conhece bem a situação. Seus dois filhos dão aulas e ensinam matemática na Europa. Agora, a tragédia no Musi-Café tirou a vida de boa parte dos jovens que ficaram na cidade. Labbé afirmou que entre os mortos estão três ex-colegas de time de seu filho mais novo.
Outro debate se concentra no futuro da ferrovia. As pessoas não querem que ela continue a passar pelo centro da cidade mas, ainda que a empresa não fechasse as portas, contornar um rio, o lago e as montanhas dos arredores custaria caro.
O desaparecimento da "Montreal, Maine and Atlantic" poderia causar um impacto econômico ainda maior.
Sobre a cidade, no alto de uma montanha, ficam as chaminés da Tafisa Canada, a maior fabricante de MDF da América do Norte. Dentro da fábrica, onde uma linha automatizada estava aplicando uma camada de tinta branca para peças que seria enviadas para a Ikea, o chefe-executivo Louis Brassard afirmou que antes do descarrilamento, cerca de 30 por cento da produção da fábrica, entre 50 e 60 contêineres por semana, eram enviados por trem.
Poucos dias depois do acidente, a empresa começou a enviar a carga para outras ferrovias. Outras fabricas da cidade também fabricam produtos de baixo custo que não são economicamente viáveis caso sejam transportados por caminhão.
- Foi um acidente trágico. Agora, se não fizermos tudo o que estiver ao nosso alcance, a tragédia será econômica - afirmou Brassard em um escritório repleto de móveis de MDF.