Após retomarem a Praça Taksim em Istambul, depois de horas de batalha nas ruas, com policiais atirando bombas de gás lacrimogêneo no início de junho, muitos dos manifestantes quebravam garrafas da cerveja Efes e as levantavam em um brinde irônico contra o primeiro-ministro, que havia acabado de forçar a aprovação de uma lei para limitar o consumo de álcool.
Até mesmo em Isparta, uma região religiosamente conservadora que apoia o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, um pequeno grupo de habitantes se reuniu, com bebidas nas mãos, em frente ao escritório do atual governador, que é aliado do primeiro-ministro, e cantava: "Saúde, Tayyip!"
A bebida está longe de ser o único problema abordado pelos protestos contra o governo, que têm agitado a Turquia nas últimas semanas. Na verdade, essa é uma questão intimamente ligada às reclamações dos manifestantes que lutam contra o que veem como a ascensão do autoritarismo do governo turco.
Isso também se relaciona à identidade do povo turco, uma vez que ambos os lados retratam os protestos como um confronto entre valores islâmicos e valores seculares. Embora os manifestantes tenham rompido com os limites impostos contra o álcool, como forma de afrontar os valores seculares da Turquia moderna, Erdogan afirmou que a "religião obriga" que o consumo de álcool seja limitado. Ele chegou ao ponto de afirmar implicitamente que Mustafa Kemal Ataturk, fundador da nação turca e bebedor notório, era um "bebum", em uma série de discursos realizados para seus defensores, acusando os manifestantes de levarem bebidas para dentro de mesquitas.
Porém, existem alguns sinais de que a iniciativa de limitar o consumo de álcool possa estar perdendo força. Um tribunal local emitiu uma liminar que derrubou uma lei local que restringia a venda e o consumo de álcool. O tribunal de uma pequena comunidade nos arredores de Ankara, capital da Turquia, emitiu uma liminar parecida.
O presidente Abdullah Gul ainda precisa aprovar a lei nacional e levantou a possibilidade de assinar um veto, dizendo que precisaria levar a opinião pública em conta antes de tomar uma decisão.
Por enquanto, embora o álcool tenha se tornado uma questão nacional, há poucas evidências de que os consumidores sejam a maioria: acredita-se que o número de abstêmios seja muito superior ao de pessoas que bebem na Turquia.
Em Isparta, antigo lar de um importante líder espiritual muçulmano e famosa pelas rosas usadas em loções e perfumes, os habitantes da cidade preferem consumir uma bebida doce feita a partir de um xarope de rosas, servida gelada, do que brindar com um copo de raki, o conhecido licor turco feito a partir de anis. Mesmo antes de a lei ter sido aprovada, essa comunidade já havia banido a bebida com leis municipais.
Porém, essa é uma cidade universitária, e alguns dos moradores bebem. Nos últimos dias, Isparta se juntou à lista das cidades nas quais o debate se intensificou.
- Não se trata apenas de religião. Para nós se trata de pessoas bêbadas, das confusões que elas causam e da violência contra as mulheres - afirmou Yusuf Gunaydin, o prefeito que, assim como muitos habitantes, é abstêmio. Contudo, acrescentou:
- Naturalmente, para o islã é proibido beber álcool.
- Isparta sempre foi conservadora. Não há uma cultura de bebida na cidade. Nós não queremos novos bares por aqui - afirmou o porta-voz do prefeito, Hasan Parlakyildiz, outro abstêmio.
Turan Eroglu, gerente de um bar chamado Barcelona, um dos poucos lugares onde se pode beber em Isparta, citou um sultão otomano brutal, que reinou no século XVII, ao descrever os planos para restringir o consumo de álcool no país, conforme idealizaram Erdogan e seu grupo, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento, conhecido pelas iniciais AK.
- Nós estamos voltando ao tempo de Murad IV, quando o álcool foi proibido. O AKP está nos levando de volta ao passado. Isso só acontecia no Irã. No entanto, agora também está acontecendo na Turquia - afirmou.
Em outro bar das redondezas, o Flora Club and Bar, Merve Vural, estudante universitário de 20 anos, afirmou:
- Nós somos estudantes e sempre encontraremos um jeito de beber álcool. Eles estão impondo a religião e estão fazendo isso lentamente.
Tuba Inamlik, estudante de engenharia de 23 anos que estava sentado em frente a outro bar, afirmou:
- A religião é uma coisa muito pessoal. Não importa o que eu faça, se eu bebo ou não, isso fica entre eu e Deus. Meu avô de 86 anos me ensinou isso.
Além das considerações religiosas, também há a história da Turquia.
Por bem ou por mal, a bebida sempre esteve associada ao estilo de vida de Ataturk, que se tornou alcoólatra quando frequentou a Escola de Guerra de Istambul e que certa vez escreveu a seu secretário, segundo o biógrafo Andrew Mango, "Preciso beber: minha mente é tão rápida e intensa que chego a sofrer."
A bebida é um sinal dos valores seculares na sociedade como um todo e, em certo momento, oficiais que não bebiam eram vistos como islamistas enrustidos e tinham dificuldade para ser promovidos.
Na Turquia, as escolhas de vida - usar o véu na cabeça, ou não, beber álcool, ou não - são extremamente politizadas. Jenny White, antropóloga da Universidade de Boston, que recentemente publicou "Muslim Nationalism and the New Turks" (Nacionalismo muçulmano e os novos turcos, em tradução literal), um livro que examina as mudanças no cenário turco após uma década de governo de Erdogan, descreveu a bebida na Turquia como "um forte marcador cultural das diferenças de classe social, estilo de vida e valores políticos".
Durante a noite em um bar de uma das vielas do bairro europeu de Istambul, não muito longe da Praça Taksim, Duygu Duman afirmou que estava tão assustada com seu governo que poderia finalmente aceitar o green card que ganhou dos Estados Unidos em uma loteria e se mudar do país.
- A percepção em relação à Turquia mudou drasticamente sob esse governo. Mas agora está ficando pior - afirmou Duman, de 36 anos, bebendo um Jack Daniel's Lynchburg Lemonade, enquanto escutava uma música do Bon Jovi no bar.
Cagri Tazgel, de 25 anos, trabalha em uma empresa de software e estava do lado de fora de um bar da região. Ele se referiu à questão em termos da divisão de classes, e de religião, que estão por trás dos protestos que expuseram dramaticamente os problemas do país.
- A Turquia é um país de gente sem educação e analfabeta, com fortes sentimentos religiosos e é esse tipo de gente que o AKP representa. Esse não é o meu governo. No fim das contas, serei obrigado a deixar o país - afirmou.